sexta-feira, 3 de junho de 2011

Homens e bichos papões

Existe um tipo de novela que quase todos construímos sobre nós, um romance familiar sobre nossas origens, algo como uma matriz para tentar explicar quem somos e para quê estamos no mundo. Ao dar “ouvidos” a esta narrativa individual (que repetimos sem o saber) os psicanalistas tentam detectar seus sintomas, inibições e angústias, não só para aplacar sofrimentos, mas para ajudar a abrir espaço para novas direções de vida e quem sabe, para a criação de novos e mais instigantes capítulos desta história. O imaginário cultural mantém o lugar do “romance” preenchido pelas fantasias humanas compartilhadas sejam elas produtos da aposta de laços (amorosos, fraternos) entre as pessoas ou o contrário disso, da criação de inimigos “comuns”, que nas religiões encarnam o “mal” que pode ameaçar a todos. O anúncio da morte de Osama Bin Laden líder do grupo extremista islâmico Al-Qaeda e há dez anos o homem mais procurado pela CIA, provocou forte comoção nos USA- em especial na cidade de Nova York, - e produziu inúmeros discursos aclamando o fim da ameaça de novos e inesperados ataques terroristas sob seu comando. O mundo respira aliviado com a morte de mais um déspota: todos se congraçam e repassam o último capítulo desta história. Não há corpo ou provas concretas, além de um exame de DNA com altas chances de comprovação da notícia. Ou seja, não se sabe se é um teatro cuja estratégia é manter o clima de “guerra ao terror” (ou o fim dela). Afinal quem não se lembra das frases de Bush pós ataque de11 de setembro em que ele convida o povo americano a compartilhar de sua busca pelo “Mal” no Oriente muçulmano? A euforia sobre o fim de Bin Laden acrescenta mais uns pontinhos para o lugar de importância do “romance” em nossas vidas. Em São Paulo está em cartaz um filme (Homens e Deuses) que narra acontecimentos verídicos ocorridos na Argélia em 1996. País de maioria muçulmana e colônia francesa até 1962, incrustado na cordilheira de Atlas havia um mosteiro com oito monges franceses, que atendiam as necessidades mais urgentes da empobrecida população local. Com filas diárias- o irmão Luc, único médico e fornecedor de remédios num raio de centenas de quilômetros - atendia uma média de oitenta pessoas entre homens, mulheres e crianças. A convivência era ativamente mantida em um clima de harmonia e trocas até que as lutas pelo poder se acirram e estes “cristãos” passam a ser protagonistas de algumas versões de “romances”. São franceses e lembram um passado de submissão e de assimetria moral e política. São mal vistos pelo exército local por não negar ajuda aos extremistas, que por seu lado ameaçam a toda a população ao cortar gargantas de seus “inimigos”. Em meio a este “imbróglio” são convidados a desocupar o mosteiro o que precipita uma longa reflexão de todos sobre seus possíveis destinos: decidir se voltam para a França, buscar um novo lugar para sua missão na África ou permanecer ali prestando o serviço ao qual se propuseram, assumindo as altas chances de serem mortos. O filme resgata a “voz” dos monges ao recorrer às cartas deixadas escritas por cada um e recupera os argumentos que os levaram a ficar no mosteiro até o fim, quando foram capturados e mortos. Assiste-se a confissão de suas dúvidas, seus medos, suas angústias. A tortura da escolha. As tentativas de encontrarem um sentido para suas vidas e mortes e o compromisso com suas verdades. E, mesmo em face à violência que atravessa as vidas de todos a partir dali, as vezes com muito medo, outras com algumas certezas, eles evitam fazer julgamentos morais e tomam para si a responsabilidade de manter a crença em sua coerência. É bom quando podemos escolher os “romances” para habitar a prateleira de nossas vidas.
Para conferir: Homens e Deuses (Des Hommes Et Des Dieux) - França / 2010
Direção: Xavier Beauvois
Elenco: Lambert Wilson, Michael Lonsdale, Olivier Rabourdin

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