quarta-feira, 2 de setembro de 2009

Caminho da loucura

Se existe um produto cultural que adentra não só nas casas, mas nas falas diárias de seus expectadores, são as novelas exibidas nos horários noturnos considerados nobres. Podemos comprovar tal afirmativa, escutando aqui e ali como os personagens da atual novela Caminho das Índias estão presentes nas cenas do cotidiano de quase todos, oferecendo conteúdos para debates sobre os destinos das relações amorosas de seus pares ou sobre os dramas e conflitos de cada personagem. A novidade cabe à proposta da autora em levar ao público a possibilidade de discussão da loucura apresentando a psicopata Yvone (encarnando aquela que se utiliza das pessoas sem demonstrar sinais de consideração ou culpa) e o esquizofrênico Tarso. O jovem Tarso, sua família, seu tratamento em clínicas especializadas, abriu espaço para mostrar como a doença psíquica é ainda hoje contestada ou encarada como algo ameaçador e estranho e como são ambíguos os caminhos escolhidos pelos familiares e pela sociedade para tratar deste tipo de sofrimento, muitas vezes negado. A própria permanência do termo “loucura”, utilizado fartamente para designar aqueles que pressupomos fugir aos nossos critérios de normalidade, já denuncia a distância que desejamos que exista entre o normal e o louco. Michel Foucault (filósofo francês) pretendeu preencher este vazio publicando uma minuciosa pesquisa sobre a História da Loucura em que mostra a evolução de seu entendimento social e como vão se modificando ao longo dos anos as formas de intervenção sobre ela, ao se deslocar lentamente o louco de uma posição de exclusão social absoluta, para a de um indivíduo com voz, capaz de dizer sobre si mesmo e de dar sentido a sua história e aos seus sintomas. A mudança de foco deveria consolidar a existência de uma pessoa e não uma doença, a ser tratada. Entretanto, continua não sendo fácil para nós, convivermos com uma linguagem por vezes “estranha” aos nossos ouvidos ou com comportamentos inesperados , que ousam desconstruir uma certa lógica que prezamos, causando-nos desconforto. Foi este estranhamento que permitiu a Freud perceber que a nossa consciência era insuficiente para dar conta da complexidade de nosso espírito humano, e apontar o descompasso entre o que produzimos e o que somos capazes de entender. Com isso, nosso equilíbrio psíquico sempre precário nos deixa muito próximos de nos sentirmos confusos, por vezes angustiados, descontrolados, perdidamente emocionados, etc. Esta tênue fronteira nos faz reféns de buscas incessantes que permitam tratar as dores psíquicas como entidades separadas de nossa subjetividade. O avanço da psicofarmacologia, por exemplo, embora tenha nos trazido oportunidades inimagináveis de acalmar ou de equilibrar nossa psique, comunga de certa tendência em reduzir o louco à sua doença, tornando-o um objeto passivo diante de um saber psiquiátrico, alienado de seus sintomas, à espera do retorno de seu estado saudável através do cumprimento de ordens ou de receitas de um especialista no assunto. Ao invés de um sujeito, uma série descritiva de sintomas descarta sua subjetividade e silencia seu sofrimento que produz incômodo. Seu delírio, por exemplo, não será aproveitado como sua possibilidade de falar de si, de narrar a sua história, e fica assim descartada a hipótese de ajudá-lo a criar um lugar legitimo de existência, auxiliando-o a construir um contorno, uma amarração de seu ser. A loucura já não tem mais nada a dizer. A subjetividade também não. Não há conflito, nem desejo, nem sofrimento, apenas uma supressão disso tudo e o vazio que daí resulta. Este é o paradoxo de nossas dores psíquicas: elas nos aproximam de um sentimento de estranhamento que nos ameaça e nos faz desejar que sejam algo que não nos pertença.O caminho das loucuras insiste em repetir seu percurso.

coluna do dia 2 de setembro de 2009

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