segunda-feira, 19 de março de 2012

O sentido da doença

Sob o instigante título “A ciência olha o escuro” a matéria do caderno Aliás do Estadão do último domingo, 11 de março, dava voz ao médico oncologista Siddhartha Mukherjee , autor de  “O Imperador de Todos os Males: Uma Biografia do Câncer” . Vencedor do Prêmio Pulitzer de 2011 na categoria não ficção, Mukherjee se propõe a desmistificar o câncer, o mal que atinge um número sem fim de humanos pelo mundo afora, e que, segundo ele, só é reconhecido consensualmente por sua descrição de um crescimento anormal de células e pelo fato de colocar a todos em pé de igualdade diante do aspecto trágico de se estar doente. Avanços e pesquisas à parte, a reação de cada ser humano para com sua doença é sempre diferente e particular, motivo pelo qual ele insiste na mistura de arte e ciência da Medicina ao enfatizar a sensibilidade na visão que cada médico deveria ter de seu paciente. Sua leitura nos faz recordar que as representações sociais das doenças não são fixas, ao contrário, constituem-se e se modificam através da história, assim como os tipos de doentes. Entre os séculos XIX e XX, por exemplo, de uma visão romântica sobre a tuberculose, que a associava à criação artística, passou-se a encará-la como  um produto da pobreza e de descuido público. Susan Sontag também fez referência às representações culturais do câncer e da tuberculose em seu ensaio “A doença como metáfora”- escrita em meio a sua própria luta contra o câncer- representações estas produzidas tanto pela literatura ficcional quanto pelos discursos médicos/psiquiátricos que privilegiariam a ideia de doença como um mal social ou como uma punição ao ser humano. Nesta mesma linha de raciocínio, o conceito de saúde, ao também sofrer influências de seu tempo, seria entendido hoje como um estado de completo bem-estar físico, mental e social, e não somente como a ausência de doença. A maioria dos leitores concordaria que a saúde é praticamente um dever que também inclui a perfeição corporal e a felicidade plena, o que faz com que todos se sintam convocados a pautar suas vidas na busca da saúde perfeita, sob pena de ser moralmente responsabilizados por estas falhas. De forma grosseira, na tentativa de se realizar um mapeamento completo/absoluto da saúde, a “psicossomática” passou a ser encarada como um setor da Medicina que almejaria descobrir a natureza exata da relação entre as emoções e as funções corporais e analisaria as doenças sempre pela relação causal com que o psíquico participa de qualquer doença. Na ponta final, toda doença poderia ser interpretada como um acontecimento psicológico, o que estimularia a crença de que adoecemos porque (inconscientemente) queremos adoecer e por isso podemos nos curar pela mobilização de nossa vontade, e pior, estaríamos aptos a escolher entre morrer e não morrer da doença. Haja onipotência!  Parece haver um pacto entre os que “curam” e os que precisam ser curados. Ambas as fatias comungam da ideologia vigente na atualidade de que as insatisfações ou desconfortos seriam desvios que devem ser suprimidos. A boa vida estaria associada à aquisição de habilidades e competências e a experiência de sofrimento acenaria a falência das obrigações existenciais. Tal tentativa de “ajuste” sem brechas acaba por desvelar o quanto as doenças carregam – desde sempre - o significado de maldição, mudando apenas seu sentido e justificativas a cada época. Permanecem tabus e disseminam o temor justamente por nos colocar frente a frente com nossos limites. Diante da dor/sofrimento (nosso ou do outro) não é dificil recuar, nos espantar ou sentir horror, o que nos faz buscar incessantemente formas sempre mais sofisticadas de cercear ou controlar os males da alma e do corpo. Também é este terror, surpresa ou curiosidade que sentimos diante de certas vidas marcadas pelo trágico, excêntrico ou estranho, que obstaculizam a tarefa clínica dos que se ocupam de cuidar. É sobre a complexidade destes cuidados que Siddhartha Mukherjee  tenta chamar a atenção em seu livro, ressaltando a importância do confronto com a emergência da subjetividade e suas consequências, mas principalmente a possibilidade de exercer um trabalho que potencialize o espaço do posicionamento de cada um frente a sua dor e sua doença. Não podemos nos esquecer de que a saúde mental/corporal como ideal e como bem comum, assim como o anseio da ciência em buscar eliminar nossos males são sintônicos com o desejo humano de silenciar as vozes destoantes, enigmáticas e por vezes dolorosas da experiência do adoecer. Buscamos incansavelmente um sistema de proteção contra qualquer sofrimento insuportável.

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