Se há um paradoxo do qual a psicanálise se ocupa é o
que imana do impacto do encontro entre o bebê e o adulto e tudo o que este
encontro produz de enigmático. A cada nascimento de um ser humano, aquela que o
gesta pode ou não antecipar sua existência ao imaginar e criar uma
representação para aquele feto que ali vive, pode ou não aceitar que ele seja
um outro e não uma continuação de si ou um intruso, pode ou não se relacionar
com ele atribuindo-lhe um nome e depositando nele projeções e idealizações de
sua própria historia ou desejos de felicidade, de heroísmo. Estamos falando
deste encontro certamente imprevisível e quase sempre perturbador que é dar a
vida a um novo ser, que produz uma mudança de lugar na cadeia geracional das
mulheres (e de homens), e que mesmo que para o observador externo seja um
processo que ocorra de forma asséptica e bem sucedida, esconde um desconhecido
em outro registro. Ou seja, toda a criação de um outro humano envolve a
violência do encontro com o “outro” e cabe ao novo-ser “traduzir” este impacto e
seus desdobramentos, com a ajuda dos que o cercam, durante seu longo e infinito
caminho de se tornar humano. Em cartaz no MAM (Museu de Arte Moderna de SP) de
setembro a dezembro deste ano a exposição “Histórias às
Margens” da artista carioca Adriana Varejão impressiona pela
ousadia com que ela expõe “suas” vísceras através de suas obras. Ao cruzar o umbral e adentrar nas salas somos tomados de um sentimento
de estranhamento e inquietação diante de enormes e belas telas de azulejos portugueses,
por exemplo, que apresentam improváveis cortes para revelar partes do corpo
humano, em geral vísceras extremamente realistas. E se este primeiro momento
impactante puder dar lugar a uma curiosidade sobre um certo “percurso” da obra
é como se a artista fizesse um convite a cada visitante para partilhar de sua
intimidade, de uma historia pessoal. Ao contrário de outras artes que
privilegiam a estética ou a invenção de novos modos de dizer o mesmo, tem-se a
impressão de que esta é uma arte viva, um verdadeiro “trabalho” de obra, como
se as telas fossem projeções de enigmas da artista, de corpo vivo e presente,
em busca de significações e traduções possíveis sobre si e o mundo. Nesta
exposição em especial, organizada de tal forma que pudesse criar um percurso em
ordem cronológica, quase um “resumo” de sua obra, é possível perceber um
deslocamento entre uma linguagem que apresenta um funcionamento primitivo
(vísceras) em suas tonalidades e intensidades, que aos poucos, mesmo
fragmentados, passa a apresentar partes do corpo humano, rostos da artista com pequenos
“furos” nos olhos até a surpresa da sala final, com seus mais recentes
trabalhos, grandes e lindos pratos de parede que expõem frutos do mar ou
frutas, em tons marítimos verde e azul, um convite ao prazer. Uma leitura
barroca, que admite as aberturas, as feridas, uma entre as infinitas
possibilidades de construirmos nossas representações de nós mesmos e do mundo,
que por sorte pode se deslocar e ampliar. Recomendo.
Para conferir: Adriana Varejão – Histórias às
margens
MAM SP (Parque
Ibirapuera) até 16/12 Entrada
gratuita
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