quarta-feira, 28 de novembro de 2012

Fissuras


Se há um paradoxo do qual a psicanálise se ocupa é o que imana do impacto do encontro entre o bebê e o adulto e tudo o que este encontro produz de enigmático. A cada nascimento de um ser humano, aquela que o gesta pode ou não antecipar sua existência ao imaginar e criar uma representação para aquele feto que ali vive, pode ou não aceitar que ele seja um outro e não uma continuação de si ou um intruso, pode ou não se relacionar com ele atribuindo-lhe um nome e depositando nele projeções e idealizações de sua própria historia ou desejos de felicidade, de heroísmo. Estamos falando deste encontro certamente imprevisível e quase sempre perturbador que é dar a vida a um novo ser, que produz uma mudança de lugar na cadeia geracional das mulheres (e de homens), e que mesmo que para o observador externo seja um processo que ocorra de forma asséptica e bem sucedida, esconde um desconhecido em outro registro. Ou seja, toda a criação de um outro humano envolve a violência do encontro com o “outro” e cabe ao novo-ser “traduzir” este impacto e seus desdobramentos, com a ajuda dos que o cercam, durante seu longo e infinito caminho de se tornar humano. Em cartaz no MAM (Museu de Arte Moderna de SP) de setembro a dezembro deste ano a exposição “Histórias às Margens” da artista carioca Adriana Varejão impressiona pela ousadia com que ela expõe “suas” vísceras através de suas obras. Ao cruzar o umbral e adentrar nas salas somos tomados de um sentimento de estranhamento e inquietação diante de enormes e belas telas de azulejos portugueses, por exemplo, que apresentam improváveis cortes para revelar partes do corpo humano, em geral vísceras extremamente realistas. E se este primeiro momento impactante puder dar lugar a uma curiosidade sobre um certo “percurso” da obra é como se a artista fizesse um convite a cada visitante para partilhar de sua intimidade, de uma historia pessoal. Ao contrário de outras artes que privilegiam a estética ou a invenção de novos modos de dizer o mesmo, tem-se a impressão de que esta é uma arte viva, um verdadeiro “trabalho” de obra, como se as telas fossem projeções de enigmas da artista, de corpo vivo e presente, em busca de significações e traduções possíveis sobre si e o mundo. Nesta exposição em especial, organizada de tal forma que pudesse criar um percurso em ordem cronológica, quase um “resumo” de sua obra, é possível perceber um deslocamento entre uma linguagem que apresenta um funcionamento primitivo (vísceras) em suas tonalidades e intensidades, que aos poucos, mesmo fragmentados, passa a apresentar partes do corpo humano, rostos da artista com pequenos “furos” nos olhos até a surpresa da sala final, com seus mais recentes trabalhos, grandes e lindos pratos de parede que expõem frutos do mar ou frutas, em tons marítimos verde e azul, um convite ao prazer. Uma leitura barroca, que admite as aberturas, as feridas, uma entre as infinitas possibilidades de construirmos nossas representações de nós mesmos e do mundo, que por sorte pode se deslocar e ampliar. Recomendo.                                                    

Para conferir: Adriana Varejão – Histórias às margens 
MAM  SP (Parque Ibirapuera) até 16/12     Entrada gratuita

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