domingo, 24 de junho de 2012

O povo & a infidelidade


A Folha de São Paulo convidou dois de seus colaboradores para um debate sobre amor e infidelidades na noite do dia 18 de junho: a antropóloga carioca Mirian Goldenberg, que escreve no Caderno Equilíbrio e pesquisa há duas décadas o comportamento de homens e mulheres em sua relação com temas como sexo, casamento, fidelidade, e o cartunista Adão Iturrusgarai que entre outras pérolas criou a personagem Aline, aquela que mantém há anos uma “boa” vida conjugal com dois namorados. Enquanto Mirian tentava traduzir para a plateia os principais resultados de tantos anos de interrogatórios sobre um assunto tão sério e polêmico, Adão se encarregava de desconstruir a lógica estatística com seu humor. Frutífero, o diálogo entre os dois rendeu um livro, “Tudo o que você não queria saber sobre sexo” (Ed. Record). E pelas perguntas dos espectadores era possível mapear o que insiste em escapar aos números. Sob  olhares interrogantes homens e mulheres, atrás de seus (novos?) lugares sociais, buscam orientações e dicas sobre o que e como viver suas vidas amorosas. Existe uma fórmula para o amor? Neurocientistas e químicos analisam a estrutura biológica em busca de pistas. Psicólogos e antropólogos tentam criar teorias. Ainda temos horóscopos, cartomantes, mapas astrais, toda sorte de superstições e simpatias, além de nosso casamenteiro Santo Antônio, que no ultimo dia 13 deve ter recebido um bocado de orações. Como encontrar o parceiro ideal? Existe um grau de atração necessário para se manter um romance? A liberdade sexual alcançada pelas mulheres trouxe-lhes alguma conquista?  O que mudou para elas? O que mudou (ou não) para os homens? Quem trai mais? Há diferenças nos motivos de homens e mulheres para traírem? Quem quer se casar, homens e/ou mulheres? As perguntas tangenciavam o imbróglio maior, nossa vida amorosa, e como bem disse a antropóloga, se há um consenso em torno do que queremos para ela é que possa conter tanto a liberdade quanto a segurança, duas das maiores ânsias contemporâneas. Todos querem desejar, amar, trabalhar, se divertir, fazer parte integral da cultura e da sociedade, mas botam uma fé danada no amor, na espera de que ele possa trazer paz, preencher o vazio, produzir um sentido para as suas vidas. Sonhamos com  uma vida amorosa e sexual nos moldes do “foram felizes para sempre”, sem perturbações que questionem nossos desejos ou a falta dele ou conflitos que revelem nossa incapacidade de gerenciar sua complexidade. Se homens e mulheres buscam isso o que vem depois? É aqui que Adão Iturrusgarai desperta gargalhadas ao expor as bizarrices do que em geral não revelamos de nossas vidas íntimas, os bastidores da relação entre amor e sexo. Isto talvez denuncie a impossibilidade de mapearmos sua complexidade, principalmente quando incluímos a tal da fidelidade, cujas razões confrontam  e questionam as regras que construímos. Ok, todos sonham em ter um parceiro ideal, sonham em amarrar o bode (de suas vidas) em alguma árvore, e isto guarda um pouco do mito da monogamia, este resquício poderoso de nossa infância: ter alguém que nos ame para sempre, que nos ache especial, que não nos deixe cair no vazio ou na desventura de nos sentirmos excluídos e sem valor. Mas o que acontece com a estampa feliz do casal depois que eles passam pelo umbral da porta de seu lar doce lar?  Em geral não estamos muito dispostos a saber sobre as decepções, os ressentimentos, as brigas, etc. Ler (e rir) das tirinhas de Adão sobre relacionamentos pode ser uma alternativa.

quinta-feira, 21 de junho de 2012

O amor “en-cena”


No sábado do dia 8 de junho de 2012 o Estadão publicou uma entrevista do filósofo e ex-ministro da educação da França, Luc Ferry, em que este dizia que vivemos a era da revolução do amor. Não estaríamos mais dispostos a nos sacrificar em nome de grandes ideias ou de utopias, mas possivelmente em nome de nossos filhos, pais ou amigos, ou seja, daqueles que amamos. O casamento por amor, e não mais por interesses, estaria no centro desta nova ordem social e teria disparado (neste ultimo século) a desconstrução de muitos valores tradicionais. Nossa sociedade teria se transformado em um conjunto de individualidades (homens e mulheres) que buscam a emancipação desfrutando de uma liberdade jamais alcançada, e o esperado seria que pudéssemos aceitar melhor o diferente, já que nosso objetivo maior seria o de preparar o futuro daqueles que tanto amamos, nossos filhos, ou melhor, as gerações futuras. Por isso, da condição humana pós-moderna seria esperado valores morais como a solidariedade, a tolerância, a gentileza e a amizade. Mas como evitar que estes valores degenerem para o egoísmo, a insensibilidade e o desinteresse pelas misérias humana ou simplesmente pelo outro? Este é o paradoxo sobre o qual versa o novo filme do polêmico diretor  Roman Polanski  em cartaz em São Paulo, “O Deus da Carnificina”. Baseado na peça da dramaturga e atriz francesa Yasmina Reza (já encenada na Broadway e em São Paulo) a ação se passa  em um apartamento em Nova York e tem como disparador a briga entre dois garotos em que um deles é ferido pelo outro, fato que fará com que os pais dos dois marquem um encontro para um pedido formal de desculpas, sem a presença dos meninos. A princípio, a educação e a civilidade imperam, com os pais do garoto agredido recebendo em sua casa os pais do agressor, mas aos poucos a polidez dá lugar a uma artilharia verbal e a cordialidade antes sob o controle do manual do politicamente correto, descamba para  uma exposição escancarada daquilo que chamamos “vida privada”. Embora possa ser considerada uma comédia de costumes, o filme consegue perturbar a todos os espectadores que aos poucos vão sendo tomados por uma tensão desconfortável (vez por outra descarregada por risos nervosos)  que os leva a  torcer para que os casais desistam daquela troca de ofensas, deem por terminado o conflito e voltem para suas tocas. Paira uma certa vergonha, este sentimento social que ajuda a viabilizar nossas relações com os outros ao marcar um espaço de intimidade para cada um, e assim guardarmos nossos sentimentos/desejos secretos que poderão ou não ser compartilhados segundo nossas escolhas. Mas o desconforto também sugere que identificamos ali a possibilidade disso acontecer com cada um de nós o que confirma que a construção do espaço social de convivência esbarra no modo como nossas emoções organizam nossas vidas interiores. Se o casamento por amor funda uma nova maneira de existir em que o amor não só passa a regular a vida familiar e societária como se mantém como uma promessa de felicidade para a vida de cada um, vivemos em um circuito amoroso em que o culto ao amor que se recebe dos pais impõe a necessidade de buscar indícios do amor no outro, aumentando a importância do amor como confirmação do próprio valor. E funda uma lógica menos racional e mais emocional para as motivações dos comportamentos humanos. Na sala de estar do apartamento em que praticamente acontecem todas as cenas do filme, o café/bolo/ética/gentilezas vai aos poucos cedendo espaço ao uísque/carências/mágoas/agressividade. Todos confessam seus mais miseráveis sentimentos e acusam algum dos outros por suas faltas. Há ora uma aliança entre os pares conjugais, ora entre os gêneros e as trocas de farpas parecem esconder pedidos de reconhecimento de valor, de amor, de superioridade moral/social/intelectual, de poder. Faltou um estranho, alguém de fora, que adentrasse naquela sala e cochichasse aos ouvidos dos quatro como somos limitados em nossas pretensões, pegasse de forma carinhosa as mãos do casal visitante, levasse-os até a porta agradecendo sua disponibilidade, juntasse as mãos do casal anfitrião, convidasse-os a irem dormir em sua cama de casal, apagasse as luzes e deixasse enfim na tela do cinema, o “The End”.

quarta-feira, 20 de junho de 2012

Sentimento nacional


Londres é o tipo de cidade que costuma surpreender os desavisados e  causar, em geral, uma espécie de “bom” estranhamento diante do antigo e do novo, da presença constante dos ícones da monarquia em contraste com a liberdade de estilos e a diversidade de etnias de seus cidadãos. Cosmopolita e controversa, tradicional e supermoderna pode-se em um mesmo dia imaginar-se voltando alguns séculos diante do ritual da troca da guarda no Palácio de Buckingham e ao zarpar para Piccadilly Circus, onde se concentram os teatros, cinemas, artistas de rua, ou para o leste com seus ateliês, galerias, lojas e diferentes tribos de jovens já avançar para a vanguarda dos tempos atuais. No domingo de 3 de junho último,canais de TV permitiram que o mundo todo celebrasse junto à família real, a festa dos sessenta anos de reinado da Rainha Elizabeth II e assistisse milhares de espectadores acenarem suas bandeirinhas e se amontoarem as margens do rio Tâmisa – com a chuva e o frio que caracterizam os céus londrinos- à espera do cortejo de mil barcos que acompanhou a embarcação real. Sessenta anos não é pouco e durante este período, a geração de nossos pais, a nossa e a de nossos filhos acostumou-se a “conviver” com esta senhora e seus familiares, ora sob o fascínio de sua pompa e circunstância ora com o espanto de sua humanidade. Entre baixas e altas pode-se dizer que a maioria do povo britânico aplaude e sente muito orgulho de sua família real, mesmo quando ela vai parar nas manchetes dos jornais e revela capítulos picantes de sua historia ou expõe seus gastos milionários. Assim como o chá e a pontualidade, a família real faz parte da identidade cultural inglesa. E isso não é pouco. É justamente este sentimento nacional que dá visibilidade a monarquia britânica, ao contrário de outras que passam quase despercebidas. Pode-se dizer que grande parte da força da “marca” desta realeza que acaba por devolver seus gastos aos cofres públicos e leva uma série de benefícios ao país, principalmente em forma de turismo, nasce deste sentimento nacional de orgulho e crença de seu povo em seu valor. Quanto a nós brasileiros, será que temos uma identidade nacional? A possibilidade que a mídia contemporânea abriu de um convívio mais próximo com outros povos, seus costumes, sua estética, nos permite apontar diferenças importantes para cada uma das culturas, que em geral são tanto a graça quanto a desgraça de cada país. Cá no Brasil, apesar de grande nação, de falarmos a mesma língua em toda a extensão territorial e convivermos com um baixo índice de conflitos étnicos ou religiosos, guardamos uma singela aura infantil no sentimento de pertencimento principalmente quando o foco é a responsabilização de cada cidadão sobre os rumos ou desacertos do país. Ao contrário de nossos vizinhos argentinos, p.e., preferimos deixar cair na “vala”, quaisquer desrazões ou mal ajambrados jeitos de resolver nossas questões e contradições, evitando o debate e por decorrência, os mal estares de seus acertos e todos os desafios implicados na defesa dos interesses de uma nação. Há os que se desanimam ao ver perpetuado um certo “jeitinho brasileiro” de dourar a pílula. Mas há sempre os que apostam que esta mesma eterna “juventude” do país pode guardar a potencia de medidas e soluções inovadoras. Há os que esperam e os que se implicam.


sexta-feira, 18 de maio de 2012

Virada cultural


O Brasil (assim como outros países emergentes) vem se tornando foco de interesse dos que buscam visualizar “tendências” do futuro da vida humana, ou seja, dos que, diante da “certeza” de tantas incertezas, tentam antecipar um roteiro ou mapa para os variados setores de nossas vidas: finanças, saúde, felicidade, trabalho, cultura, relacionamentos, etc. de olho no que imaginam ser uma espécie de laboratório do planeta. De país periférico, passamos a objeto de reflexão e curiosidade dos que apostam que, sem o peso de uma “tradição” civilizatória/intelectual/científica/ ideológica, nossas soluções para as rápidas mudanças que o mundo contemporâneo impõe podem ser diferenciadas, quiçá inovadoras. Será? Talvez, se tomamos o Brasil em um estágio de adolescência, curtindo a ferveção/pulsação incessante deste período e/ou impelido a inventar uma disponibilidade infinita para o novo, mas sem muitos compromissos para com seu mal ajambrado passado. Uma visão romântica? De certa maneira sim. O romantismo guarda em certo grau uma visão idealizada da condição humana, ou dos estágios da vida. Viver em um patamar quase sempre provisório para as soluções dos problemas (leves ou escabrosos) pode desembocar na invenção de modos criativos de existência, ou ser um desastre. As possibilidades de vida humana sem direitos e obrigações civilizatórios mais ou menos encarnados costumam ser injustas ou confusas. Mas certamente vivemos em uma era em que a cultura global pede muita flexibilidade. E se há um setor efervescente, que tem sido pensado e ocupado por jovens inspirados, cheios de ideias e orgulhosos do acervo hiperdiversificado do Brasil, é nossa cultura. Um bom exemplo são as edições da virada cultural paulistana, um evento que completou oito anos no último dia 5/6 de maio e que aos poucos foi arregimentando diferentes camadas da população. Pensemos em seu duplo sentido. Virada tanto significa o novo, algo que implica em uma ruptura com o velho quanto alude ao fato de ser um evento que “vira” a noite /dia e oferece espetáculos para todos os gostos e idades ininterruptamente. Fui conferir. Depois de estudar o mapa dos quase cem locais espalhados pela cidade, elegi o centro de São Paulo (onde se concentravam mais da metade dos palcos) para apreciar uma das apresentações da programação do “Piano na praça” no sábado à noite. Para aqueles que não conhecem, o palco fica na Praça Dom Gaspar, atrás da Biblioteca Mario de Andrade, em um lugar arborizado e muito apropriado para um solo de piano. Tudo trabalhava a favor: a noite de lua cheia iluminava as belas e antigas construções do centrão, o clima era de um outono agradável, muita gente transitava para lá e para cá e policiais espalhados em duplas pelas esquinas estavam a postos para orientar os transeuntes sobre os melhores trajetos dos destinos escolhidos. Impossível não sentir certa satisfação ao cruzar com alguns grupos de senhorinhas que estudavam seu “mapa da virada” para tentar eleger com algum consenso as próximas atrações. Quanto a mim, já estava decidido, a próxima parada seria o coreto da Praça da República. Que boa escolha! Depois de ouvir um excelente solo ao piano, sentada embaixo de árvores centenárias, nada melhor do que balançar mansamente o esqueleto junto aos que já se encontravam ao redor do antigo coreto. No “ar”? O Projeto Coisa Fina, uma banda composta de feras da música instrumental brasileira que promove uma fusão do jazz ao baião, maracatu e samba. Na pauta, muitas músicas do genial maestro Moacir Santos. Com muito orgulho, tudo coisa nossa!


sexta-feira, 11 de maio de 2012

Danos morais

Dias destes testemunhei um acidente que não só me tirou o fôlego por alguns instantes, como me doeu a alma por um bom tempo. Prestes a passar por um cruzamento importante e antecipando a troca do sinal verde pelo vermelho através da visão do amarelo, fui diminuindo a velocidade quando à minha esquerda um carro atravessou apressadamente já no vermelho. Nada de novo - apesar de transgressivo - não fosse o fato do motorista não ter visto a travessia de duas bicicletas e não ter conseguido evitar a colisão com uma delas. Pior, apesar de ter sido obrigado a frear, o carro logo engatou nova marcha e sumiu avenida afora, sem titubear. Não parou para se informar sobre os estragos de sua imprudência ou para socorrer a vítima se fosse o caso. Fui tomada por um mal estar insuportável que só foi mediamente amenizado ao perceber que o rapaz atropelado se levantava e tirava às pressas sua bicicleta toda torta do meio da rua. Imaginei que, como eu, ele estaria tomado por um misto de alívio por sair incólume e muita raiva pela imprudência, covardia e indiferença do motorista. Seu companheiro de bicicleta saiu em disparada para tentar alcançar o carro, enquanto algumas pessoas na calçada se movimentaram em sua direção para acolhê-lo. Invadiu-me a certeza de que todos ali partilhavam do mesmo sentimento de aversão contra o malfadado motorista, seu ato antissocial, sua falta de respeito para com os outros. Graças ao incentivo de construções de ciclovias e à pronta adesão de milhares de jovens, o número de ciclistas que transitam no dia a dia da cidade de São Paulo aumentou consideravelmente nestes últimos dois anos, assim como os acidentes. Sem muitas leis, os protestos que reúnem os usuários de bikes nestas ocasiões tem pressionado o setor público a construir uma “visibilidade” para o ciclista através de implantação de novas normas principalmente para os veículos. Com o rádio ligado quase sempre na Eldorado FM, venho acompanhando esta evolução por uma de suas mais famosas “bike reporter”, Renata Falzoni, que informara recentemente sobre campanhas públicas e novas leis de transito que passam a proteger a vida do ciclista e garantir-lhe o uso das ruas. Segui com meus pensamentos e me pus a “inventar” um diálogo com um outro fictício em que eu pudesse discorrer sobre minha repulsa ao ato “violento” daquele motorista. Um tipo de violência que nos deixa impotente diante da constatação de que fica a cargo de cada um decidir sobre o “uso” e o “abuso” que faz das pessoas. Resta-nos a aposta em um espaço comum de constrangimento compartilhado, como o que imaginei em relação aos que assistiram o acidente. Saber que a maioria poderia se indignar me alentava. Uma amiga me relatara sobre este mesmo constrangimento compartilhado quando, em um grande magazine, assistira a uma explosão violenta de um pai diante do filho que derrubara uma peça do mostruário. Todos pararam e olharam assustados como a esperar que aquele pai pudesse pedir desculpas por seu “excesso”. Ficaríamos listando um número sem fim de exemplos de tais violações e talvez um dos mais escabrosos pudesse ser o que a mídia tem chamado de “cachoeiragate” em que um homem consegue construir e manter uma rede de influencia e troca de favores, posicionando-se tal e qual um “padrinho” em todas as esferas de poder da sociedade, arrastando partidos, corporações, empresas, prefeitos, governadores, polícia, etc. É por desconfiar que a fronteira entre o “civilizado” e o “bárbaro”, entre o digno e o indigno habita permanente em cada um de nós que precisamos desta zona de conforto que imaginamos existir, uma zona moral que seria partilhada pela maioria de “nós”, que não nos deixaria sozinhos diante de certas violações desastrosas das normas de convivência e que nos ajudasse a reafirmar certos valores preciosos na manutenção dos laços sociais

Ouvir, cuidar, refletir...


“Cartas a uma jovem psicanalista” é um livro (mais ou menos recente) escrito por um psicanalista brasileiro que há anos reside na França, Heitor O´Dwyer de Macedo, este título sendo uma homenagem àquele utilizado por Rainer Maria Rilke  no inicio do século XX em que o poeta francês se dirige a um jovem admirador e tenta “desidealizar” o percurso rumo à  consagração do poeta ao revelar-lhe quão inseparável a poesia seria da sua própria vida. Pode-se dizer que ambos os autores alertam para a impossibilidade de se prever estas trajetórias, e optam por discorrer sobre a suas paixões ao apresentar suas marcas pessoais na expectativa de contribuir com alguma luz para  seus respectivos iniciantes. A maioria dos textos gestados nas instituições psicanalíticas  e dirigidos aos que desejam iniciar sua formação reiteram que este processo acontece no próprio percurso da formação em que, além da aquisição e apropriação das conceituações teóricas, a análise pessoal desempenha um papel central. Que esta análise não é suficiente para se tornar um analista. Que é preciso analisar outros e submeter a sua clínica à escuta apurada de um supervisor.   E embora todos concordem que viver uma análise é a condição principal para que alguém exerça o ofício de analista, todos afirmam não haver um manual em que estejam recenseados procedimentos para a investigação do inconsciente como prática terapêutica: não há um saber a priori. O que a psicanálise insiste em revelar ao sujeito à sua revelia é parte integrante do saber e da intervenção psicanalítica, seu paradoxo e sua razão de ser, e só podemos nos considerar psicanalistas se pudermos nos submeter a uma análise com alguém que também se submeteu, etc. Tal e qual um ritual de passagem, esta transmissão, sempre via inconsciente,  está articulada de forma complexa ao modo de apreensão daqueles que escolhemos para serem nossos analistas. E isto é apenas uma ponta do iceberg. É na intimidade de nossa análise pessoal que cada um se aproxima e se apropria do modo de operar da psicanálise e ao mesmo tempo é quando podemos conhecer o trabalho de um outro analista. Também é como analisando que podemos verificar a realidade psíquica, reconhecer sua existência, experimentá-la. Uma experiência a portas fechadas, sem testemunhas, que não se ensina, e que é transmitida na medida em que são oferecidos sentidos possíveis aos nossos sintomas, sonhos e lapsos, à medida que somos defrontados com nossas dores e resistências na viagem em direção ao reconhecimento de nossos conflitos e desejos. Trilhar este caminho, portanto é uma experiência que se vive na carne, visceral e pessoal. Por outro lado, é na clínica que a teoria se recria. Deitados (ou não) no divã daquele que elegemos como nosso analista, vamos nos familiarizando com o método psicanalítico, reconstruindo nossa historia psíquica, e nos incumbindo de refazê-la (ou ressignifica-la) continuamente. Estes passos iniciais da prática clínica não são nada fáceis, pois paralelo ao mergulho em nosso inconsciente, o contato com nossos pacientes nos lança as mesmas questões, e nos convoca a revisitá-las por outros ângulos. Além disso, não é nada fácil tolerar as dúvidas a que estamos expostos quando elaboramos teoricamente nossos atendimentos clínicos ou escolher saídas para os impasses que ela promove. Ao fascínio que a maioria de nós sente no exercício da profissão de psicanalista se contrapõe profundos sentimentos de inadequação e despreparo pessoal, conceitual e técnico. Muitas vezes  caímos em uma certa rigidez técnica e alguma confusão teórica, ou sacralizamos os textos, em uma tentativa de antecipação teórica que nos auxilie a suportar nossa aflição diante do não saber.  E a história não acaba aí. Como qualquer escolha de profissão, ser um psicanalista nos coloca diante de questões de identidade, reconhecimento e pertinência. Temos que eleger a instituição, os analistas, os supervisores. Precisamos inicialmente de Mestres, a quem possamos atribuir todo o saber, o que muitas vezes  transforma  nosso discurso teórico em dogma. Mais, o árduo percurso rumo a este oficio parece ser atenuado quando o idealizamos e apostamos na possibilidade de vir a alcançar no seu saber, uma espécie de completude, de respostas a todas as perguntas (nossas e dos outros). Um grande paradoxo, já que tal expectativa desloca a Psicanálise de seu papel de investigadora da condição humana para coloca-la em um lugar de Verdade absoluta. Se  a psicanalise nos convida a compartilhar de sua pretensão permanente na desconstrução da majestade do eu e dos ideais absolutos de seu tempo, não estamos isentos, como indivíduos-psicanalistas, de no exercício da tarefa de cuidar/ouvir do sofrimento e da dor humana escorregarmos para o lugar dos que imaginam saber como “deveria ser ”.


sexta-feira, 27 de abril de 2012

Arte e deuses


Em conversas ao pé da porta com uma querida amiga, ela me contava como às vezes se entristecia ao perceber que suas lembranças de infância lhe surgiam fragmentadas. E se durante muito tempo seguiu culpando sua fraca memória, este argumento já não cabia. Desconfiava isso sim, que lhe faltava coragem para amarrar sua história e quem sabe por pura proteção, teria evitado trazer à tona passagens muito tristes ou impactantes de sua vida. Havia lido em algum lugar o depoimento de um escritor que ao descrever seu percurso até a realização de seu primeiro livro, também se debatia com os entrecortes de sua memória infantil. E tal dificuldade lhe causava tanta agonia, que escrever em algum lugar, cartas, cadernos ou diários, lhe devolvia a sensação de ser dono de suas lembranças. Só depois de muitas entrevistas em que foi questionado sobre os caminhos de sua inspiração, teria passado a tentar entender o motor que movia sua necessidade de escrever. Era-lhe vital colocar em prosa suas apreensões e fantasias, fossem quais fossem. Às vezes escudo, às vezes possibilidade,  escrever, que agora poderia ser sua melhor ferramenta, tinha sido a única forma de construir uma ponte mais ou menos segura entre si e o mundo, que lhe permitisse seguir rumo ao desconhecido. Quando de tempos em tempos se permitia (ou podia) voltar a ler seus textos, por vezes conseguia traçar o fio de sua intuição, antes sem rumo. O relato de tal escritor teria sido muito inspirador para ela, que não sendo uma escritora e sim artista plástica, via sua arte vagando em um espaço sem sentidos definidos. Como ele havia confessado, ela também criava suas peças aparentemente sem nenhuma (pré) concepção, embora lhe fosse imprescindível classificá-las em seguida como a poderem ser guardadas em algum “arquivo” imaginário que lhe parecesse coerente com seu acervo artístico. Se durante um bom tempo esta simples tarefa lhe trouxe conforto, neste momento as dúvidas lhe assaltavam e o que parecia ordenado passou a lhe perturbar. Precisava achar o fio da meada, saber a que/para que/porque sua inspiração surgia ou não. Era como se sua produção só pudesse ser chamada de arte se ela encontrasse um sentido para ela. E isso a levava a outra premissa, a de que ao construir a história de sua arte pudesse entender a sua própria. Mas...e se sua arte fosse uma espécie de imposição dos “vãos” de sua memória? E se ela só pudesse acontecer graças à sua impossibilidade de colocar sua história na “linha do tempo”? Estaria ela condenada a viver uma arte-sintoma? Sua aflição me parecia genuína. Como ajudá-la? O que dizer? Fui socorrida pela lembrança do vídeo de uma escritora famosa que também passara pelas aflições que atravessam o ato criativo. Após escrever um livro que lhe rendeu muita fama, entrou no vácuo do futuro. Como repetir a dose? Como enfrentar a expectativa de seus leitores que não cessavam de lhe perguntar sobre a vinda do “segundo”? A resposta, dizia ela, demorou a chegar e finalmente a libertou deste martírio. A Arte não seria humana e sim uma entidade divina, coisa de deuses que escolhiam aleatoriamente alguns serzinhos humanos como portadores eventuais de suas ( pré) visões.