A Folha de
São Paulo convidou dois de seus colaboradores para um debate sobre amor e
infidelidades na noite do dia 18 de junho: a antropóloga carioca Mirian Goldenberg,
que escreve no Caderno Equilíbrio e pesquisa há duas décadas o comportamento de
homens e mulheres em sua relação com temas como sexo, casamento, fidelidade, e
o cartunista Adão Iturrusgarai que entre outras pérolas criou a personagem
Aline, aquela que mantém há anos uma “boa” vida conjugal com dois namorados.
Enquanto Mirian tentava traduzir para a plateia os principais resultados de
tantos anos de interrogatórios sobre um assunto tão sério e polêmico, Adão se
encarregava de desconstruir a lógica estatística com seu humor. Frutífero, o
diálogo entre os dois rendeu um livro, “Tudo o que você não queria saber sobre
sexo” (Ed. Record). E pelas perguntas dos espectadores era possível mapear o
que insiste em escapar aos números. Sob olhares interrogantes homens e mulheres, atrás
de seus (novos?) lugares sociais, buscam orientações e dicas sobre o que e como
viver suas vidas amorosas. Existe uma fórmula para o amor? Neurocientistas e
químicos analisam a estrutura biológica em busca de pistas. Psicólogos e
antropólogos tentam criar teorias. Ainda temos horóscopos, cartomantes, mapas
astrais, toda sorte de superstições e simpatias, além de nosso casamenteiro
Santo Antônio, que no ultimo dia 13 deve ter recebido um bocado de orações. Como
encontrar o parceiro ideal? Existe um grau de atração necessário para se manter
um romance? A liberdade sexual alcançada pelas mulheres trouxe-lhes alguma conquista? O que mudou para elas? O que mudou (ou não)
para os homens? Quem trai mais? Há diferenças nos motivos de homens e mulheres
para traírem? Quem quer se casar, homens e/ou mulheres? As perguntas
tangenciavam o imbróglio maior, nossa vida amorosa, e como bem disse a
antropóloga, se há um consenso em torno do que queremos para ela é que possa
conter tanto a liberdade quanto a segurança, duas das maiores ânsias
contemporâneas. Todos querem desejar, amar, trabalhar, se divertir, fazer parte
integral da cultura e da sociedade, mas botam uma fé danada no amor, na espera de
que ele possa trazer paz, preencher o vazio, produzir um sentido para as suas
vidas. Sonhamos com uma vida amorosa e sexual
nos moldes do “foram felizes para sempre”, sem perturbações que questionem
nossos desejos ou a falta dele ou conflitos que revelem nossa incapacidade de
gerenciar sua complexidade. Se homens e mulheres buscam isso o que vem depois? É
aqui que Adão Iturrusgarai desperta gargalhadas ao expor as bizarrices do que em
geral não revelamos de nossas vidas íntimas, os bastidores da relação entre
amor e sexo. Isto talvez denuncie a impossibilidade de mapearmos sua
complexidade, principalmente quando incluímos a tal da fidelidade, cujas razões
confrontam e questionam as regras que
construímos. Ok, todos sonham em ter um parceiro ideal, sonham em amarrar o
bode (de suas vidas) em alguma árvore, e isto guarda um pouco do mito da
monogamia, este resquício poderoso de nossa infância: ter alguém que nos ame
para sempre, que nos ache especial, que não nos deixe cair no vazio ou na
desventura de nos sentirmos excluídos e sem valor. Mas o que acontece com a
estampa feliz do casal depois que eles passam pelo umbral da porta de seu lar
doce lar? Em geral não estamos muito
dispostos a saber sobre as decepções, os ressentimentos, as brigas, etc. Ler (e
rir) das tirinhas de Adão sobre relacionamentos pode ser uma alternativa.
domingo, 24 de junho de 2012
quinta-feira, 21 de junho de 2012
O amor “en-cena”
No sábado
do dia 8 de junho de 2012 o Estadão publicou uma entrevista do filósofo e
ex-ministro da educação da França, Luc Ferry, em que este dizia que vivemos a
era da revolução do amor. Não estaríamos mais dispostos a nos sacrificar em nome
de grandes ideias ou de utopias, mas possivelmente em nome de nossos filhos,
pais ou amigos, ou seja, daqueles que amamos. O casamento por amor, e não mais
por interesses, estaria no centro desta nova ordem social e teria disparado (neste
ultimo século) a desconstrução de muitos valores tradicionais. Nossa sociedade teria
se transformado em um conjunto de individualidades (homens e mulheres) que
buscam a emancipação desfrutando de uma liberdade jamais alcançada, e o
esperado seria que pudéssemos aceitar melhor o diferente, já que nosso objetivo
maior seria o de preparar o futuro daqueles que tanto amamos, nossos filhos, ou
melhor, as gerações futuras. Por isso, da condição humana pós-moderna seria
esperado valores morais como a solidariedade, a tolerância, a gentileza e a
amizade. Mas como evitar que estes valores degenerem para o egoísmo, a insensibilidade
e o desinteresse pelas misérias humana ou simplesmente pelo outro? Este é o
paradoxo sobre o qual versa o novo filme do polêmico diretor Roman Polanski em cartaz em São Paulo, “O Deus da
Carnificina”. Baseado na peça da dramaturga e atriz francesa Yasmina Reza (já
encenada na Broadway e em São Paulo) a ação se passa em um apartamento em Nova York e tem como disparador
a briga entre dois garotos em que um deles é ferido pelo outro, fato que fará
com que os pais dos dois marquem um encontro para um pedido formal de
desculpas, sem a presença dos meninos. A princípio, a educação e a civilidade
imperam, com os pais do garoto agredido recebendo em sua casa os pais do
agressor, mas aos poucos a polidez dá lugar a uma artilharia verbal e a
cordialidade antes sob o controle do manual do politicamente correto, descamba
para uma exposição escancarada daquilo
que chamamos “vida privada”. Embora possa ser considerada uma comédia de
costumes, o filme consegue perturbar a todos os espectadores que aos poucos vão
sendo tomados por uma tensão desconfortável (vez por outra descarregada por
risos nervosos) que os leva a torcer para que os casais desistam daquela troca
de ofensas, deem por terminado o conflito e voltem para suas tocas. Paira uma
certa vergonha, este sentimento social que ajuda a viabilizar nossas relações
com os outros ao marcar um espaço de intimidade para cada um, e assim guardarmos
nossos sentimentos/desejos secretos que poderão ou não ser compartilhados
segundo nossas escolhas. Mas o desconforto também sugere que identificamos ali
a possibilidade disso acontecer com cada um de nós o que confirma que a construção
do espaço social de convivência esbarra no modo como nossas emoções organizam nossas
vidas interiores. Se o casamento por amor funda uma nova maneira de existir em
que o amor não só passa a regular a vida familiar e societária como se mantém
como uma promessa de felicidade para a vida de cada um, vivemos em um circuito
amoroso em que o culto ao amor que se recebe dos pais impõe a necessidade de
buscar indícios do amor no outro, aumentando a importância do amor como
confirmação do próprio valor. E funda uma lógica menos racional e mais
emocional para as motivações dos comportamentos humanos. Na sala de estar do apartamento em que praticamente
acontecem todas as cenas do filme, o café/bolo/ética/gentilezas vai aos poucos
cedendo espaço ao uísque/carências/mágoas/agressividade. Todos confessam seus
mais miseráveis sentimentos e acusam algum dos outros por suas faltas. Há ora
uma aliança entre os pares conjugais, ora entre os gêneros e as trocas de
farpas parecem esconder pedidos de reconhecimento de valor, de amor, de
superioridade moral/social/intelectual, de poder. Faltou um estranho, alguém de
fora, que adentrasse naquela sala e cochichasse aos ouvidos dos quatro como somos
limitados em nossas pretensões, pegasse de forma carinhosa as mãos do casal
visitante, levasse-os até a porta agradecendo sua disponibilidade, juntasse as mãos
do casal anfitrião, convidasse-os a irem dormir em sua cama de casal, apagasse
as luzes e deixasse enfim na tela do cinema, o “The End”.
quarta-feira, 20 de junho de 2012
Sentimento nacional
Londres é o tipo de cidade que costuma surpreender os desavisados e causar, em geral, uma espécie de “bom” estranhamento diante do antigo e do novo, da presença constante dos ícones da monarquia em contraste com a liberdade de estilos e a diversidade de etnias de seus cidadãos. Cosmopolita e controversa, tradicional e supermoderna pode-se em um mesmo dia imaginar-se voltando alguns séculos diante do ritual da troca da guarda no Palácio de Buckingham e ao zarpar para Piccadilly Circus, onde se concentram os teatros, cinemas, artistas de rua, ou para o leste com seus ateliês, galerias, lojas e diferentes tribos de jovens já avançar para a vanguarda dos tempos atuais. No domingo de 3 de junho último,canais de TV permitiram que o mundo todo celebrasse junto à família real, a festa dos sessenta anos de reinado da Rainha Elizabeth II e assistisse milhares de espectadores acenarem suas bandeirinhas e se amontoarem as margens do rio Tâmisa – com a chuva e o frio que caracterizam os céus londrinos- à espera do cortejo de mil barcos que acompanhou a embarcação real. Sessenta anos não é pouco e durante este período, a geração de nossos pais, a nossa e a de nossos filhos acostumou-se a “conviver” com esta senhora e seus familiares, ora sob o fascínio de sua pompa e circunstância ora com o espanto de sua humanidade. Entre baixas e altas pode-se dizer que a maioria do povo britânico aplaude e sente muito orgulho de sua família real, mesmo quando ela vai parar nas manchetes dos jornais e revela capítulos picantes de sua historia ou expõe seus gastos milionários. Assim como o chá e a pontualidade, a família real faz parte da identidade cultural inglesa. E isso não é pouco. É justamente este sentimento nacional que dá visibilidade a monarquia britânica, ao contrário de outras que passam quase despercebidas. Pode-se dizer que grande parte da força da “marca” desta realeza que acaba por devolver seus gastos aos cofres públicos e leva uma série de benefícios ao país, principalmente em forma de turismo, nasce deste sentimento nacional de orgulho e crença de seu povo em seu valor. Quanto a nós brasileiros, será que temos uma identidade nacional? A possibilidade que a mídia contemporânea abriu de um convívio mais próximo com outros povos, seus costumes, sua estética, nos permite apontar diferenças importantes para cada uma das culturas, que em geral são tanto a graça quanto a desgraça de cada país. Cá no Brasil, apesar de grande nação, de falarmos a mesma língua em toda a extensão territorial e convivermos com um baixo índice de conflitos étnicos ou religiosos, guardamos uma singela aura infantil no sentimento de pertencimento principalmente quando o foco é a responsabilização de cada cidadão sobre os rumos ou desacertos do país. Ao contrário de nossos vizinhos argentinos, p.e., preferimos deixar cair na “vala”, quaisquer desrazões ou mal ajambrados jeitos de resolver nossas questões e contradições, evitando o debate e por decorrência, os mal estares de seus acertos e todos os desafios implicados na defesa dos interesses de uma nação. Há os que se desanimam ao ver perpetuado um certo “jeitinho brasileiro” de dourar a pílula. Mas há sempre os que apostam que esta mesma eterna “juventude” do país pode guardar a potencia de medidas e soluções inovadoras. Há os que esperam e os que se implicam.
sexta-feira, 18 de maio de 2012
Virada cultural
O Brasil (assim como outros
países emergentes) vem se tornando foco de interesse dos que buscam visualizar
“tendências” do futuro da vida humana, ou seja, dos que, diante da “certeza” de
tantas incertezas, tentam antecipar um roteiro ou mapa para os variados setores
de nossas vidas: finanças, saúde, felicidade, trabalho, cultura, relacionamentos,
etc. de olho no que imaginam ser uma espécie de laboratório do planeta. De país
periférico, passamos a objeto de reflexão e curiosidade dos que apostam que,
sem o peso de uma “tradição” civilizatória/intelectual/científica/ ideológica,
nossas soluções para as rápidas mudanças que o mundo contemporâneo impõe podem
ser diferenciadas, quiçá inovadoras. Será? Talvez, se tomamos o Brasil em um
estágio de adolescência, curtindo a ferveção/pulsação incessante deste período e/ou
impelido a inventar uma disponibilidade infinita para o novo, mas sem muitos
compromissos para com seu mal ajambrado passado. Uma visão romântica? De certa
maneira sim. O romantismo guarda em certo grau uma visão idealizada da condição
humana, ou dos estágios da vida. Viver em um patamar quase sempre provisório
para as soluções dos problemas (leves ou escabrosos) pode desembocar na
invenção de modos criativos de existência, ou ser um desastre. As possibilidades
de vida humana sem direitos e obrigações civilizatórios mais ou menos
encarnados costumam ser injustas ou confusas. Mas certamente vivemos em uma era
em que a cultura global pede muita flexibilidade. E se há um setor efervescente,
que tem sido pensado e ocupado por jovens inspirados, cheios de ideias e
orgulhosos do acervo hiperdiversificado do Brasil, é nossa cultura. Um bom
exemplo são as edições da virada cultural paulistana, um evento que completou
oito anos no último dia 5/6 de maio e que aos poucos foi arregimentando
diferentes camadas da população. Pensemos em seu duplo sentido. Virada tanto significa
o novo, algo que implica em uma ruptura com o velho quanto alude ao fato de ser
um evento que “vira” a noite /dia e oferece espetáculos para todos os gostos e
idades ininterruptamente. Fui conferir. Depois de estudar o mapa dos quase cem
locais espalhados pela cidade, elegi o centro de São Paulo (onde se
concentravam mais da metade dos palcos) para apreciar uma das apresentações da
programação do “Piano na praça” no sábado à noite. Para aqueles que não
conhecem, o palco fica na Praça Dom Gaspar, atrás da Biblioteca Mario de
Andrade, em um lugar arborizado e muito apropriado para um solo de piano. Tudo
trabalhava a favor: a noite de lua cheia iluminava as belas e antigas construções
do centrão, o clima era de um outono agradável, muita gente transitava para lá
e para cá e policiais espalhados em duplas pelas esquinas estavam a postos para
orientar os transeuntes sobre os melhores trajetos dos destinos escolhidos. Impossível
não sentir certa satisfação ao cruzar com alguns grupos de senhorinhas que estudavam
seu “mapa da virada” para tentar eleger com algum consenso as próximas
atrações. Quanto a mim, já estava decidido, a próxima parada seria o coreto da Praça
da República. Que boa escolha! Depois de ouvir um excelente solo ao piano,
sentada embaixo de árvores centenárias, nada melhor do que balançar mansamente
o esqueleto junto aos que já se encontravam ao redor do antigo coreto. No “ar”?
O Projeto Coisa Fina, uma banda composta de feras da música instrumental
brasileira que promove uma fusão do jazz ao baião, maracatu e samba. Na pauta,
muitas músicas do genial maestro Moacir Santos. Com muito orgulho, tudo coisa
nossa!
sexta-feira, 11 de maio de 2012
Danos morais
Dias destes testemunhei um acidente que não só
me tirou o fôlego por alguns instantes, como me doeu a alma por um bom tempo.
Prestes a passar por um cruzamento importante e antecipando a troca do sinal
verde pelo vermelho através da visão do amarelo, fui diminuindo a velocidade
quando à minha esquerda um carro atravessou apressadamente já no vermelho. Nada
de novo - apesar de transgressivo - não fosse o fato do motorista não ter visto
a travessia de duas bicicletas e não ter conseguido evitar a colisão com uma
delas. Pior, apesar de ter sido obrigado a frear, o carro logo engatou nova
marcha e sumiu avenida afora, sem titubear. Não parou para se informar sobre os
estragos de sua imprudência ou para socorrer a vítima se fosse o caso. Fui
tomada por um mal estar insuportável que só foi mediamente amenizado ao
perceber que o rapaz atropelado se levantava e tirava às pressas sua bicicleta toda
torta do meio da rua. Imaginei que, como eu, ele estaria tomado por um misto de
alívio por sair incólume e muita raiva pela imprudência, covardia e indiferença
do motorista. Seu companheiro de bicicleta saiu em disparada para tentar
alcançar o carro, enquanto algumas pessoas na calçada se movimentaram em sua
direção para acolhê-lo. Invadiu-me a certeza de que todos ali partilhavam do
mesmo sentimento de aversão contra o malfadado motorista, seu ato antissocial,
sua falta de respeito para com os outros. Graças ao incentivo de construções de
ciclovias e à pronta adesão de milhares de jovens, o número de ciclistas que
transitam no dia a dia da cidade de São Paulo aumentou consideravelmente nestes
últimos dois anos, assim como os acidentes. Sem muitas leis, os protestos que
reúnem os usuários de bikes nestas ocasiões tem pressionado o setor público a
construir uma “visibilidade” para o ciclista através de implantação de novas normas
principalmente para os veículos. Com o rádio ligado quase sempre na Eldorado
FM, venho acompanhando esta evolução por uma de suas mais famosas “bike
reporter”, Renata Falzoni, que informara recentemente sobre campanhas públicas
e novas leis de transito que passam a proteger a vida do ciclista e
garantir-lhe o uso das ruas. Segui com meus pensamentos e me pus a “inventar”
um diálogo com um outro fictício em que eu pudesse discorrer sobre minha
repulsa ao ato “violento” daquele motorista. Um tipo de violência que nos deixa
impotente diante da constatação de que fica a cargo de cada um decidir sobre o
“uso” e o “abuso” que faz das pessoas. Resta-nos a aposta em um espaço comum de
constrangimento compartilhado, como o que imaginei em relação aos que
assistiram o acidente. Saber que a maioria poderia se indignar me alentava. Uma
amiga me relatara sobre este mesmo constrangimento compartilhado quando, em um
grande magazine, assistira a uma explosão violenta de um pai diante do filho
que derrubara uma peça do mostruário. Todos pararam e olharam assustados como a
esperar que aquele pai pudesse pedir desculpas por seu “excesso”. Ficaríamos
listando um número sem fim de exemplos de tais violações e talvez um dos mais
escabrosos pudesse ser o que a mídia tem chamado de “cachoeiragate” em que um
homem consegue construir e manter uma rede de influencia e troca de favores,
posicionando-se tal e qual um “padrinho” em todas as esferas de poder da
sociedade, arrastando partidos, corporações, empresas, prefeitos, governadores,
polícia, etc. É por desconfiar que a fronteira entre o “civilizado” e o
“bárbaro”, entre o digno e o indigno habita permanente em cada um de nós que
precisamos desta zona de conforto que imaginamos existir, uma zona moral que
seria partilhada pela maioria de “nós”, que não nos deixaria sozinhos diante de
certas violações desastrosas das normas de convivência e que nos ajudasse a
reafirmar certos valores preciosos na manutenção dos laços sociais
Ouvir, cuidar, refletir...
“Cartas a uma jovem psicanalista”
é um livro (mais ou menos recente) escrito por um psicanalista brasileiro que há
anos reside na França, Heitor O´Dwyer de Macedo, este título sendo uma
homenagem àquele utilizado por Rainer Maria Rilke no inicio do século XX em que o poeta francês
se dirige a um jovem admirador e tenta “desidealizar” o percurso rumo à consagração do poeta ao revelar-lhe quão
inseparável a poesia seria da sua própria vida. Pode-se dizer que ambos os
autores alertam para a impossibilidade de se prever estas trajetórias, e optam
por discorrer sobre a suas paixões ao apresentar suas marcas pessoais na
expectativa de contribuir com alguma luz para seus respectivos iniciantes. A maioria dos textos
gestados nas instituições psicanalíticas
e dirigidos aos que desejam iniciar sua formação reiteram que este
processo acontece no próprio percurso da formação em que, além da aquisição e
apropriação das conceituações teóricas, a análise pessoal desempenha um papel
central. Que esta análise não é suficiente para se tornar um analista. Que é
preciso analisar outros e submeter a sua clínica à escuta apurada de um
supervisor. E embora todos concordem
que viver uma análise é a condição principal para que alguém exerça o ofício de
analista, todos afirmam não haver um manual em que estejam recenseados
procedimentos para a investigação do inconsciente como prática terapêutica: não
há um saber a priori. O que a psicanálise insiste em revelar ao sujeito à sua
revelia é parte integrante do saber e da intervenção psicanalítica, seu
paradoxo e sua razão de ser, e só podemos nos considerar psicanalistas se pudermos
nos submeter a uma análise com alguém que também se submeteu, etc. Tal e qual
um ritual de passagem, esta transmissão, sempre via inconsciente, está articulada de forma complexa ao modo de
apreensão daqueles que escolhemos para serem nossos analistas. E isto é apenas
uma ponta do iceberg. É na intimidade de nossa análise pessoal que cada um se
aproxima e se apropria do modo de operar da psicanálise e ao mesmo tempo é
quando podemos conhecer o trabalho de um outro analista. Também é como
analisando que podemos verificar a realidade psíquica, reconhecer sua existência,
experimentá-la. Uma experiência a portas fechadas, sem testemunhas, que não se
ensina, e que é transmitida na medida em que são oferecidos sentidos possíveis
aos nossos sintomas, sonhos e lapsos, à medida que somos defrontados com nossas
dores e resistências na viagem em direção ao reconhecimento de nossos conflitos
e desejos. Trilhar este caminho, portanto é uma experiência que se vive na
carne, visceral e pessoal. Por outro lado, é na clínica que a teoria se recria.
Deitados (ou não) no divã daquele que elegemos como nosso analista, vamos nos
familiarizando com o método psicanalítico, reconstruindo nossa historia
psíquica, e nos incumbindo de refazê-la (ou ressignifica-la) continuamente. Estes
passos iniciais da prática clínica não são nada fáceis, pois paralelo ao
mergulho em nosso inconsciente, o contato com nossos pacientes nos lança as
mesmas questões, e nos convoca a revisitá-las por outros ângulos. Além disso, não
é nada fácil tolerar as dúvidas a que estamos expostos quando elaboramos
teoricamente nossos atendimentos clínicos ou escolher saídas para os impasses que
ela promove. Ao fascínio que a maioria de nós sente no exercício da profissão
de psicanalista se contrapõe profundos sentimentos de inadequação e despreparo
pessoal, conceitual e técnico. Muitas vezes caímos em uma certa rigidez técnica e alguma
confusão teórica, ou sacralizamos os textos, em uma tentativa de antecipação
teórica que nos auxilie a suportar nossa aflição diante do não saber. E a história não acaba aí. Como qualquer
escolha de profissão, ser um psicanalista nos coloca diante de questões de
identidade, reconhecimento e pertinência. Temos que eleger a instituição, os
analistas, os supervisores. Precisamos inicialmente de Mestres, a quem possamos
atribuir todo o saber, o que muitas vezes
transforma nosso discurso teórico
em dogma. Mais, o árduo percurso rumo a este oficio parece ser atenuado quando
o idealizamos e apostamos na possibilidade de vir a alcançar no seu saber, uma
espécie de completude, de respostas a todas as perguntas (nossas e dos outros).
Um grande paradoxo, já que tal expectativa desloca a Psicanálise de seu papel
de investigadora da condição humana para coloca-la em um lugar de Verdade
absoluta. Se a psicanalise nos convida a
compartilhar de sua pretensão permanente na desconstrução da majestade do eu e
dos ideais absolutos de seu tempo, não estamos isentos, como indivíduos-psicanalistas,
de no exercício da
tarefa de cuidar/ouvir do sofrimento e da dor humana escorregarmos para o lugar
dos que imaginam saber como “deveria ser ”.
sexta-feira, 27 de abril de 2012
Arte e deuses
Em conversas ao pé da porta com uma querida amiga, ela me contava como às vezes se entristecia ao perceber que suas lembranças de infância lhe surgiam fragmentadas. E se durante muito tempo seguiu culpando sua fraca memória, este argumento já não cabia. Desconfiava isso sim, que lhe faltava coragem para amarrar sua história e quem sabe por pura proteção, teria evitado trazer à tona passagens muito tristes ou impactantes de sua vida. Havia lido em algum lugar o depoimento de um escritor que ao descrever seu percurso até a realização de seu primeiro livro, também se debatia com os entrecortes de sua memória infantil. E tal dificuldade lhe causava tanta agonia, que escrever em algum lugar, cartas, cadernos ou diários, lhe devolvia a sensação de ser dono de suas lembranças. Só depois de muitas entrevistas em que foi questionado sobre os caminhos de sua inspiração, teria passado a tentar entender o motor que movia sua necessidade de escrever. Era-lhe vital colocar em prosa suas apreensões e fantasias, fossem quais fossem. Às vezes escudo, às vezes possibilidade, escrever, que agora poderia ser sua melhor ferramenta, tinha sido a única forma de construir uma ponte mais ou menos segura entre si e o mundo, que lhe permitisse seguir rumo ao desconhecido. Quando de tempos em tempos se permitia (ou podia) voltar a ler seus textos, por vezes conseguia traçar o fio de sua intuição, antes sem rumo. O relato de tal escritor teria sido muito inspirador para ela, que não sendo uma escritora e sim artista plástica, via sua arte vagando em um espaço sem sentidos definidos. Como ele havia confessado, ela também criava suas peças aparentemente sem nenhuma (pré) concepção, embora lhe fosse imprescindível classificá-las em seguida como a poderem ser guardadas em algum “arquivo” imaginário que lhe parecesse coerente com seu acervo artístico. Se durante um bom tempo esta simples tarefa lhe trouxe conforto, neste momento as dúvidas lhe assaltavam e o que parecia ordenado passou a lhe perturbar. Precisava achar o fio da meada, saber a que/para que/porque sua inspiração surgia ou não. Era como se sua produção só pudesse ser chamada de arte se ela encontrasse um sentido para ela. E isso a levava a outra premissa, a de que ao construir a história de sua arte pudesse entender a sua própria. Mas...e se sua arte fosse uma espécie de imposição dos “vãos” de sua memória? E se ela só pudesse acontecer graças à sua impossibilidade de colocar sua história na “linha do tempo”? Estaria ela condenada a viver uma arte-sintoma? Sua aflição me parecia genuína. Como ajudá-la? O que dizer? Fui socorrida pela lembrança do vídeo de uma escritora famosa que também passara pelas aflições que atravessam o ato criativo. Após escrever um livro que lhe rendeu muita fama, entrou no vácuo do futuro. Como repetir a dose? Como enfrentar a expectativa de seus leitores que não cessavam de lhe perguntar sobre a vinda do “segundo”? A resposta, dizia ela, demorou a chegar e finalmente a libertou deste martírio. A Arte não seria humana e sim uma entidade divina, coisa de deuses que escolhiam aleatoriamente alguns serzinhos humanos como portadores eventuais de suas ( pré) visões.
Assinar:
Postagens (Atom)