domingo, 8 de julho de 2012

Corpos à deriva


O caderno da Ilustríssima (Folha de São Paulo) do domingo 1°/07/2012 trazia em sua capa uma foto impactante, um corpo mantido no ar por um guindaste, uma massa inerte. A reportagem denunciava as execuções públicas que voltaram a ser permitidas no Irã a partir de 2009. Acontecida dias antes em uma cidade próxima de Teerã, e aberta propositalmente à população que se dividia entre olhares espantados e bocas caladas ou em manifestações de júbilo pela pena aplicada, os dois homens enforcados teriam cometido crimes inaceitáveis na cultura do país, um estuprador e outro traficante. Mas na pergunta que permeava a reportagem sobrava espanto: porque retornamos a processos violentos de punições quando, já no século XXI, teríamos modos mais “civilizados” de tratar nossos “fora da lei”? Ou seja, porque haveria uma espécie de retorno do primitivo, como se o processo civilizatório da humanidade guardasse eternamente seu avesso, nosso lado animal? Não parece ser uma questão fácil de ser respondida, afinal não foram poucos os que se debruçaram sobre a história de nossa “civilização” e pensaram sobre os seus fios evolutivos, marcando as formas de poder e de alienação, assim como os avanços na construção de uma convivência em que cada um, individualmente, poderia se responsabilizar por sua ‘cidadania’ a partir do compartilhamento de certas normas e leis que balizariam os direitos, as obrigações e as punições aos infratores. Parecem existir certas figuras paradigmáticas de nosso estofo humano que se repetem ali e aqui desmascarando ora nossa violência, ora nosso lado perverso, ora o grotesco, enfim figuras do excesso, do nonsense, que denunciam o caldo virulento que nos compõe. Ao ler a reportagem, me lembrei de certas cenas de filmes, alguns sobre a vida na Idade Média e outros sobre a ocupação do Oeste americano. Na Idade Média todos viviam sob os códigos religiosos, as leis eram principalmente divinas e sagradas e as pessoas estavam condenadas a ganharem os céus por suas virtudes ou o inferno por suas transgressões e ousadias. Em geral nas cenas de execuções públicas em que corpos ardiam no fogo do “inferno” ou cabeças eram decapitadas, a população entoava verdadeiros mantras, exorcizando aqueles que teriam merecido tal pena e aliviados por terem “Alguém” que vigiasse e se responsabilizasse por estes destinos. Já os famosos faroestes, em que as cenas de enforcamentos eram parte da tentativa dos xerifes para fazer valer a lei e a ordem naquelas “terras de ninguém”, aquele circo se fazia necessário para que cada morte pudesse ter um valor diferente das outras cometidas sem o respaldo da lei. Um tempo já moderno, mas de implementação do permitido e do proibido, de construção de um espaço em que a convivência pudesse ficar minimamente garantida pelo consenso entre os homens, para que cada um, individualmente, soubesse que apesar de ser livre para decidir sobre muitas coisas, os dois interditos fundamentais da humanidade, ou seja, o tabu do incesto e do assassinato precisariam ficar permanentemente  validados. Mas como entender o retorno destas execuções públicas no Irã, em um tempo em que não haveria mais motivos para “festejar” ou “discriminar” e sim se envergonhar destas mortes sem mediações, quase “animais”, senão como um dispositivo truculento dos que detém o poder e que certamente enviam um “aviso” a todos os que se pretendem dissidentes? No mesmo domingo várias matérias na web chamavam a atenção para o retorno do mito de Fausto, estreando nos cinemas de São Paulo. Embora esta versão se baseie no livro escrito por Goethe na Alemanha dos anos 1808, o mito já existia sem uma autoria definida desde o século XV e sua reincidência só nos revela o quanto Fausto em seu pacto com o diabo, é a manifestação de nosso eterno desejo moderno em não precisar pagar a parcela de renúncia, ou seja, nós em busca do absoluto, da não-morte, do gozo do poder total, do divino. A reportagem da Folha, ao final, estaria às voltas com mais uma das previsões sobre o destino da história humana, o fim do mundo sem leis, sem flechas, sem compromissos, onde qualquer um pode escolher o horror ou a esperança?

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