segunda-feira, 29 de outubro de 2012

Deixem vir os pequeninos


Imagino que todos saibam ou imaginam o que significa a maratona de exames anuais – muitas vezes semestrais - que temos que nos submeter para checar nossa saúde quando nos aproximamos ou já mergulhamos na “melhor idade”. Foi numa dessas manhãs que assisti pela primeira vez ao novo programa matinal da apresentadora global Fátima Bernardes. Próximo ao dia 12 de outubro, que antes de se tornar feriado nacional em homenagem a Nossa Senhora da Aparecida era mais conhecido como o dia da criança, o programa celebrava a infância. Para meu deleite lá estavam a dupla de compositores Sandra Peres e Paulo Tatit, do “Palavra Cantada”, que há algumas décadas se debruçam sobre o cancioneiro infantil nacional recuperando canções e compondo novas. Para abrir seu programa, Fátima incitava seus convidados a cavoucar a memória atrás das canções de sua infância e dentre estas (para os que já fossem pais) quais teriam sido reproduzidas com seus filhos. Na toada destas lembranças algumas jovens mães aproveitaram para questionar o conteúdo de certas canções infantis tradicionais que ao invés de palavras de acalanto continham letras assustadoras, caso do boi da cara preta, da cuca que vem pegar, do pau que foi atirado no gato ou do cravo que brigou com a rosa deixando-a despedaçada. Qual seria o sentido delas? Por quais razões o ato de ninar bebês ou de entretê-los viria acompanhado de palavras que descreveriam ações tão assustadoras? Senti não ter acompanhado o debate que se seguiu, mas me lembrei de imediato dos contos infantis povoados de bruxas, lobo-maus e monstros. Quem tem filhos ou netos sabe o quanto as historias infantis são instrumentos para o conhecimento do mundo tanto por enunciar os problemas como por propor soluções. Elas em geral não funcionam como exemplos, mas como modos de facilitar o acesso da criança à complexidade das relações e dos afetos dando pistas para possíveis ações. Não por acaso fadas e bruxas com suas tramas cruéis ou pacificadoras continuam a fazer sucesso. Um dos motivos é porque revelam as dificuldades das relações familiares, em que filhos podem odiar aqueles que mais amam e pais podem “devorar” suas crias. Além disso, as historias  admitem a existência de sentimentos desagradáveis, mas inevitáveis como a raiva, a inveja ou os ciúmes que, sempre mal vistos e condenados por atrapalharem as relações sociais, podem ameaçar as crianças que se sentem inseguras com o amor de seus pais, que tem medo de serem abandonadas, que se sentem culpadas por disputarem um lugar especial e rivalizar com algum irmão ou em desejar ocupar o lugar da mãe com o pai ou vice versa. Ao contrário do que se imagina, portanto, as “boas” historias são as que permitem que as fantasias, os temores, os desejos proibidos sejam vividos de forma simbólica e isso acontece sempre que as crianças elegem alguma historia em especial que precisa ser contada por um bom tempo ou quando há pedidos de que sejam transformadas/ recriadas de acordo com suas necessidades, para dar conta de seus conflitos, angustias e frustrações ou dar forma a sentimentos confusos. Se a infância jamais alcançou tamanho foco na historia da humanidade é porque mais do que nunca há um consenso de que neste período as vivências são formadoras e constituintes. Isto convoca a todos que pretendem exercer a paternidade ou a maternidade, escancarando suas incertezas e inseguranças. Algumas canções antigas como as que invocam o boi da cara preta ou a cuca provavelmente cantam o desamparo  dos pais diante da “infância” que seus filhos evocam neles.

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