Imagino que todos saibam ou imaginam o que significa
a maratona de exames anuais – muitas vezes semestrais - que temos que nos
submeter para checar nossa saúde quando nos aproximamos ou já mergulhamos na
“melhor idade”. Foi numa dessas manhãs que assisti pela primeira vez ao novo
programa matinal da apresentadora global Fátima Bernardes. Próximo ao dia 12 de
outubro, que antes de se tornar feriado nacional em homenagem a Nossa Senhora
da Aparecida era mais conhecido como o dia da criança, o programa celebrava a
infância. Para meu deleite lá estavam a dupla de compositores Sandra Peres e
Paulo Tatit, do “Palavra Cantada”, que há algumas décadas se debruçam sobre o
cancioneiro infantil nacional recuperando canções e compondo novas. Para abrir seu
programa, Fátima incitava seus convidados a cavoucar a memória atrás das
canções de sua infância e dentre estas (para os que já fossem pais) quais
teriam sido reproduzidas com seus filhos. Na toada destas lembranças algumas
jovens mães aproveitaram para questionar o conteúdo de certas canções infantis tradicionais
que ao invés de palavras de acalanto continham letras assustadoras, caso do boi
da cara preta, da cuca que vem pegar, do pau que foi atirado no gato ou do
cravo que brigou com a rosa deixando-a despedaçada. Qual seria o sentido delas?
Por quais razões o ato de ninar bebês ou de entretê-los viria acompanhado de palavras
que descreveriam ações tão assustadoras? Senti não ter acompanhado o debate que
se seguiu, mas me lembrei de imediato dos contos infantis povoados de bruxas,
lobo-maus e monstros. Quem tem filhos ou netos sabe o quanto as historias infantis
são instrumentos para o conhecimento do mundo tanto por enunciar os problemas
como por propor soluções. Elas em geral não funcionam como exemplos, mas como modos
de facilitar o acesso da criança à complexidade das relações e dos afetos dando
pistas para possíveis ações. Não por acaso fadas e bruxas com suas tramas
cruéis ou pacificadoras continuam a fazer sucesso. Um dos motivos é porque
revelam as dificuldades das relações familiares, em que filhos podem odiar
aqueles que mais amam e pais podem “devorar” suas crias. Além disso, as
historias admitem a existência de
sentimentos desagradáveis, mas inevitáveis como a raiva, a inveja ou os ciúmes
que, sempre mal vistos e condenados por atrapalharem as relações sociais, podem
ameaçar as crianças que se sentem inseguras com o amor de seus pais, que tem
medo de serem abandonadas, que se sentem culpadas por disputarem um lugar
especial e rivalizar com algum irmão ou em desejar ocupar o lugar da mãe com o
pai ou vice versa. Ao contrário do que se imagina, portanto, as “boas”
historias são as que permitem que as fantasias, os temores, os desejos
proibidos sejam vividos de forma simbólica e isso acontece sempre que as crianças
elegem alguma historia em especial que precisa ser contada por um bom tempo ou quando há pedidos de que sejam transformadas/ recriadas de acordo com suas necessidades,
para dar conta de seus conflitos, angustias e frustrações ou dar forma a
sentimentos confusos. Se a infância jamais alcançou tamanho foco na historia da
humanidade é porque mais do que nunca há um consenso de que neste período as
vivências são formadoras e constituintes. Isto convoca a todos que pretendem
exercer a paternidade ou a maternidade, escancarando suas incertezas e
inseguranças. Algumas canções antigas como as que invocam o boi da cara preta
ou a cuca provavelmente cantam o desamparo
dos pais diante da “infância” que seus filhos evocam neles.
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