Como se vê, a despeito dos dois
filmes terem produzido suas marcas por vias controversas, ambos contaram com
uma identificação significativa do público, como a mostrar que o que se passava
na tela podia acontecer com as pessoas que habitam este mundo real e atual. Sem
dúvida há um imenso acervo de histórias filmadas que privilegiam os conflitos,
dores, dramas e anseios que giram em torno das relações amorosas. Não por
acaso, já que ocupando uma grande fatia do cotidiano das vidas de quase todos, a
paralisia (ou a angústia) de se perceber totalmente incompetente para fazer e
manter laços, a agonia de suportar a ausência ou os ciúmes, as inseguranças
frente as incertezas do sentimento do outro, ou do seu desejo, as dores de se
saber não poder ser exclusivo para o outro, demonstram ser os laços amorosos um
tema central, assim como seus tortuosos caminhos de busca e conquista, um dos
mais discutidos.
As “utopias” e as “nostalgias”
citadas no título acima, ou melhor, certos olhares que damos ao futuro ou ao
passado como mantenedores de ideais - sejam eles quais forem- poderiam ser nossas
ilusões, sem as quais nossas vidas se tornam áridas. Se utilizarmos estes dois
termos como báscula do espaço ocupado pelos laços amorosos, é possível destacar
tanto a visão nostálgica dos que lamentam viverem privados do romantismo
apaixonado do início da modernidade, quanto os que o vivem como uma “utopia”,
mantendo tal ideal como único sinônimo da felicidade a ser conquistada.
Sem muitas referencias sobre o
destino destas apreensões, há os que refletem os laços amorosos humanos prevendo
um futuro desastroso, frente a um sujeito “líquido”, sem interioridade ou
capacidade de reflexão de si, colecionador de sensações, absorvido em si
próprio e cujas relações seriam efêmeras. No livro “Amor líquido” o sociólogo Bauman traça um painel da “misteriosa fragilidade
dos vínculos humanos, do sentimento de insegurança que ela inspira e dos
desejos conflitantes de apertar os laços e ao mesmo tempo mantê-los frouxos”. Abandonados
aos próprios sentidos e sentimentos, todos ansiariam pela segurança do
convívio, mas em geral não suportariam ou não se sentiriam aptos a isso. Tal
“incompetência” criaria um impasse na questão amorosa da atualidade, onde o
ideal de felicidade atribuído a esta, teria que conviver com as
impossibilidades na manutenção de vínculos, oscilando entre o sonho e o pesadelo,
entendendo-se aqui os prazeres do convívio e os horrores da clausura.
Sem desconsiderar tais análises
importantes e legítimas ou mesmo a complexidade das relações humanas na
atualidade, fica a pergunta sobre o paradoxo da manutenção do desejo das relações
amorosas, que desde a modernidade, resiste às transformações culturais e persiste
em sua cadeira cativa de ideal de felicidade. Para o bem e para o mal, ou ainda
por motivações conscientes e inconscientes diversas, a grande maioria deseja se
ligar amorosamente a um outro, quem sabe porque, como afirma Bauman ,estar
apaixonado ainda faz ressurgir a fé na regularidade do mundo e na previsibilidade
dos eventos, indispensáveis para a manutenção de nossa ilusão.
A ilusão e seu lugar no imaginário
humano foi tema das preocupações de Freud para quem a vida sem ilusões seria
impossível, já que não seria alimentada pelo desejo que nos humaniza. Mas, se é
possível utilizar adjetivos banais, há as “boas” e as “más” ilusões, e as “boas”,
segundo Lajonquiére, seriam as que não mascarariam a marca da fragilidade de
nossa existência e não formatariam a distância entre nós e os ideais que dão
sentido à nossa vida. Seguindo tal raciocínio, poder-se-ia dizer que a aposta freudiana
em uma subjetividade mais ciente de sua fragilidade em parte teria se realizado.
Ponderemos. Não há como nos esquecer de outra afirmação freudiana que aponta
nosso desamparo humano, baseado na premissa de que ao nascer, precisamos de
cuidados de um outro para sobreviver, o que criaria para sempre a necessidade de
sermos amados. Na base dos laços humanos estaria, portanto, a necessidade de ser
reconhecido, cuidado e amado. E mesmo vivendo hoje o apogeu da ideologia do
individualismo com nosso Eu a ocupar o lugar que antes pertencia à natureza ou
a Deus, desejamos amar e ser amados e continuamos a buscar as melhores maneiras
para isso. Se ousarmos encarar os sujeitos contemporâneos não pelo que deixamos
de ser – até porque isso implicaria em uma norma de existência e, portanto,
numa descrição moral - mas no que nos é possível, lembrando que somos sempre
produtos da cultura que produzimos, abrimos espaço para pensar mais livremente sobre os arranjos psíquicos dos laços
amorosos atuais. Vale dizer que a intenção é propositalmente modesta, apenas
uma tentativa de investigar e decifrar as regras da nova gramática amorosa,
tendo como base os filmes citados.
Em meados de 1996, o diretor Richard
Linklater apostou em sua boa ideia e convidou os atores Ethan Hawke e Julie
Delpy para serem coautores (além de atores) no roteiro de dois filmes, rodados
em dois tempos reais com os mesmos atores. Na verdade uma historia de amor que
seria filmada em duas etapas, com intervalo de alguns anos (acabou sendo de
nove anos), sendo que a primeira deveria se passar no romântico cenário de
Viena e a outra em Paris. No primeiro filme, Jesse um americano e Celine uma
francesa se conhecem num trem que corta a Europa e decidem passar uma noite
juntos em Viena, local onde deveriam se separar. “Antes do amanhecer” (título
do filme) eles voltam à estação de trem onde ela deverá seguir viagem à Paris
e, sem trocar telefones, endereços ou sobrenomes, fazem uma promessa
“apaixonada”: iriam se reencontrar ali, na mesma estação daqui a seis meses.
Uma prova de amor?
Este seria o ponto de partida para o
próximo filme. Nove anos mais tarde, Jesse escreveu um romance em que narra a
sua história com Celine, e está em Paris para lança-lo na charmosa livraria Shakespeare
and Company. À pergunta de um jornalista sobre o que teria acontecido com os
personagens de seu livro, referindo-se ao fato deste terminar com a promessa de
um encontro, Jesse responde que isto dependeria da visão de cada leitor, se
cínica ou romântica. Mas a despeito de sua resposta cética, as intenções do
diretor era mesmo se chafurdar no romance ao fazer adentrar nesse momento, ali na
livraria onde acontecia o lançamento, a linda Celine. O fato pouco usual de
serem dois filmes feitos com os mesmos atores encarnando os mesmos personagens
em diferentes tempos de suas vidas, sendo eles também co-roteiristas, dá um aspecto de veracidade
que fisga de imediato o espectador. No primeiro filme, ainda adolescentes, eles
falam de suas vidas, de seus projetos. A paixão é inocente, insegura, desprevenida
e traz a aposta de um novo encontro às escuras, próprio dos sonhos onipotentes
dos jovens. Na sequencia eles estão mais velhos, seus rostos mostram as marcas
dos anos e seus diálogos as responsabilidades do mundo adulto. E é com
sutileza, respeito e cuidado que vão contando um ao outro (tendo as ruas de
Paris como cenário) sobre seus sucessos e fracassos, os ajustes que tiveram que
fazer em seus ideais de juventude, e finalmente a importância daquele encontro
passado, em suas vidas. Esteticamente belo o filme convida o público a se
identificar com os personagens na intimidade dos laços amorosos que são
construídos ali, ao vivo. Viena e Paris estão entre as mais belas molduras e
habitam o imaginário da maioria das pessoas como cenário de grandes romances. A
câmera acompanha os personagens a pouca
distancia, captando olhares, sorrisos, palavras, gestos e convoca o
público a testemunhar o envolvimento de ambos e o impacto do encontro vivido no
filme anterior, para a vida de ambos. Aquele encontro no passado
transformara-se em uma referencia para o futuro. O mais inovador, no entanto
seria a espontaneidade com que Jesse e Celine falavam de si, de seus medos,
conflitos, inseguranças, e da tranquilidade com que refletem sobre suas escolhas,
ilusões, conquistas e fracassos, seus projetos frustrados, enfim sobre o que
acontece na banalidade da vida de todos,mas que tem o peso de ser o que
importa. Mais que isso, em seus diálogos há um interesse genuíno de cada um
escutar o que outro tem a dizer.
Em“Closer” , filme do diretor Mike
Nichols, dois homens e duas mulheres vão viver encontros, desencontros, uniões
e rupturas numa combinação de sexo, paixão, traições, vaidade e rivalidades,
compondo uma crônica da complexidade das relações amorosas humanas atuais.
Aqui, desejo, amor e o sexo são apresentados formando várias composições
diferentes e possíveis e os personagens estão às voltas com o desafio de
combinar as imposições de seu individualismo com suas faltas e ideais. Não há julgamentos
morais sobre suas escolhas, consistindo aí o encanto do filme, por deixar o
público à vontade para viver seus próprios sentimentos, ao identificar-se aqui
e acolá com o drama dos desejos humanos.
Passado em Londres, seu cenário urbano
é o das grandes metrópoles atuais, portanto global, e conta a história do
entrecruzamento de quatro personagens. Dan é um escritor frustrado que escreve em
obituários de um jornal e se envolve com Alice, uma stripper americana, após um
acidente em que ele a socorre. Tempos depois se preparando para o vernissage do
romance que escreveu sobre seu relacionamento com Alice acaba atraído por Ana,
a fotógrafa que fará a capa de seu livro. Ana percebe seu interesse e inicia um
jogo em que o rejeita a princípio, pois também fotografa Alice. Não querendo e
nem podendo esquecê-la Dan decide intervir em sua vida armando um encontro via
um site de relacionamento da internet entre ela e o dermatologista Larry (com o
qual mantinha um chat disfarçando-se de mulher), ao qual pretende monitorar a
distancia. A partir daqui, os espectadores acompanham os enlaces e desenlaces
amorosos dos quatro personagens em que questões difíceis vão sendo apresentadas
como painéis do repertório amoroso atual: como cada um define para si o que
representa apaixonar-se por alguém, o que quer ou deseja desta pessoa, o que
acontece quando um dos dois desiste, ou trai, como é ouvir o outro falar de
seus sentimentos mais íntimos, mas que perturba e fere, etc. “Closer” previlegia os impasses das ligações
amorosas, desde a insegurança da solidão e, portanto, a expectativa de
enlaçar-se amorosamente com alguém, à insegurança que a relação provoca. Na
falta de garantias, ou na tentativa de controlar o jogo amoroso entra-se facilmente
no terreno das humilhações e/ou da arrogância, da submissão e/ou poder
absoluto. A titulo de ilustração, durante a realização deste texto, foi enviado
via e-mail para dez pessoas de idades e sexos diferentes e que assistiram aos
filmes, algumas questões para que relatassem em poucas palavras suas impressões.
De um modo geral, a repercussão dos
filmes para elas se deveu ao fato de evidenciarem tanto os valores admitidos e
compartilhados num plano social, como os vividos na intimidade, hoje mais livres
dos cerceamentos morais, o que daria o tom de legitimidade que todos lhe
atribuem. O fato das relações amorosas se passarem no espaço da privacidade
aponta para as questões morais individuais, que na atualidade estão muito mais
submetidas aos critérios subjetivos de cada um. Os filmes mostram como estas
questões dependem e precisam ser negociadas entre os parceiros, e seus custos,
renúncias e riscos, indexados conforme as possibilidades e limites de cada um.
A saga romântica dos filmes de Richard Liklater coloca os ideais amorosos a uma
distancia possível, o que funciona como um alento para jovens e adultos que se sentem capazes de poder viver/sentir o
mesmo. Ali são mostradas de forma delicada as marcas de certos encontros que
tem o poder de nos remeter ao mesmo tempo ao “passado” da experiência prazerosa
e ao “futuro” do que desejaríamos que acontecesse. Muitas pessoas apontaram as
diferenças de gênero que ambos os filmes evidenciam, ou seja, de que os
personagens são compostos levando-se em conta que os homens agem, pensam e
sentem diferente das mulheres, a despeito da simetria da liberdade amorosa e
sexual de ambos. O fato de hoje os
sujeitos terem mais liberdade para viver separadamente amor, casamento e sexo amplia
as possibilidades de composições de experiências que são articuladas tanto às
questões de gênero, quanto aos ideais. Se é verdade que há um certo alargamento
do presente e portanto um aumento das experiências, pelo menos no item amoroso
as referencias nostálgicas ou as categorias
de um porvir não desapareceram. Sabemos o quanto faz parte da linguagem
amorosa, as promessas, compromissos e perdões. Assim também como é patente a
busca de segurança e conforto nestes enlaces.
Estes comentários são apenas uma
amostra do que seria possível levantar
em um mapeamento das relações amorosas na atualidade, um vasto campo de pesquisa justamente por se
constituírem como um valor que se mantêm impermeável às mudanças de outros. De
qualquer forma, apesar da manutenção do laço amoroso como um ideal de
felicidade, ficam evidentes as mudanças da relação dos sujeitos com este ideal
na atualidade e é fato que o laço amoroso permite às pessoas partilharem de um
horizonte de sentido que, ainda que seja ilusório, oferece chances de
construção de um futuro ou de novas “utopias”.
Texto apresentado no X Encontro Psicanalítico
do CPPL - Recife “Novos temas para a Psicanálise?!” 26, 27 e 28 de maio de 2005
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