quarta-feira, 20 de janeiro de 2010

O Haiti (não) é aqui

“...pra ver do alto a fila de soldados, quase todos pretos
Dando porrada na nuca de malandros pretos
De ladrões mulatos e outros quase brancos
Tratados como pretos
Só pra mostrar aos outros quase pretos
(E são quase todos pretos)
E aos quase brancos pobres como pretos
Como é que pretos, pobres e mulatos
E quase brancos quase pretos de tão pobres são tratados...
presos são quase todos pretos
Ou quase pretos, ou quase brancos quase pretos de tão pobres
E pobres são como podres e todos sabem como se tratam os pretos”

Esta parte da letra da música de Caetano Veloso nos oferece a oportunidade de pensar sobre o Haiti, palco de uma das piores tragédias do início desta nova década. E como esquecer? Como ficar indiferente às cenas que retratam de forma chocante o horror das mortes e da destruição das cidades e o olhar de impotência ou mesmo a penúria dos que assistem e sofrem? E muito mais do que questionar a fúria da natureza é tomar conhecimento do desastre que a precedia, ou seja, da precariedade e da miséria material em que viviam (vivem?) a grande maioria de sua população. É saber que neste país, tomado por tropas estrangeiras ( lideradas pelo Brasil) em missão de paz da ONU (ou militar?) que se dispunham a reconstruí-lo, nada funciona: há uma falência total do Estado e de qualquer serviço público para socorrer as vítimas. Não há bombeiros, não há defesa civil, não há atendimento médico e não existe governo. Sem “cimento”, as construções precárias feitas de tijolos de areia desmoronam como água. O Haiti é o país mais pobre da América, ali falta energia elétrica todos os dias e cerca de 80% da população está desempregada. Quem sabe, como diz a letra de Caetano, os haitianos sejam pobres demais e negros demais para ter os mesmos direitos que outros cidadãos do mundo e habitam um país pequeno, um ponto escuro e negro da América, sobre o qual pouco se sabe e que desde a sua independência da França, em 1804, ficou de certa forma à margem da comunidade internacional, desinvestido. Entretanto, motivo de orgulho de todo haitiano, o Haiti é o único país onde os escravos conseguiram se libertar e constituir a primeira República negra do mundo em um processo de independência diferente de outras nações, geralmente comandados pela burguesia. E o que será do Haiti quando as cenas de saque, revolta e sofrimento pela falta de comida e água saírem do cotidiano de nossos noticiários? A mídia mostrava há poucos dias os entreveros e disputas dos países para efetivar uma ajuda humanitária. O Haiti e sua gigantesca miséria têm sido terreno fértil para ONGs que trabalham ali há décadas e recebem grandes financiamentos. Mas parece que a maioria destas ONGs seguem uma lógica que não e é a da ajuda, da prevenção e da estabilização visando à reconstrução da infraestrutura e à construção de serviços públicos no país e sim a lógica das políticas econômicas de países ricos em relação à países pobres e em desenvolvimento. Em meio a tantas, funciona como oásis ler os textos de alguns estudantes de antropologia da Unicamp que estavam no Haiti para pesquisar seu povo e sua cultura (acesso pelo blog http://lacitadelle.wordpress.com/ ). É alentador perceber que existem jovens que perseguem a profundidade política e social com pitadas de perspicácia emocional o que lhes concede a sensibilidade para almejar um mundo onde a diversidade seja realmente respeitada, em que todos sejam valorizados pelo que são e pelo que conseguem fazer. Em que as discriminações sejam impedidas e a igualdade, efetivamente promovida, deixando de ser mera retórica. Jovens que buscam caminhos para que possam existir ações específicas em favor de grupos e segmentos sociais em situações de privação e sem condições de fazer uso adequado das políticas mais universais. Na música de Caetano, o Haiti poderia ser em qualquer lugar, este lugar que revela o lado selvagem do humano. Pensem no Haiti, rezem pelo Haiti.

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