quarta-feira, 27 de janeiro de 2010

A condição humana

Provavelmente nenhum leitor de jornal desconhece a coluna do nosso querido Veríssimo, há anos habitando a última página do caderno de Cultura de domingo do Estadão. E para seus fãs, é sempre alentador e muitas vezes surpreendente, compartilhar de seu humor crítico. Dividida entre uma tira que disseca os dilemas de uma família média brasileira (As aventuras da família brasil) e um pequeno texto contendo algum tema analisado de forma irônica, sua coluna traz juntos a leveza e a profundidade e deixa transparecer toda a sua sensibilidade para analisar nossa condição humana. Pode-se dizer que o humor, hoje, é um recurso largamente usado na mídia, que da reportagem à charge tenta atenuar certas verdades, imprimir leveza às críticas e, claro conquistar seu leitor. Bem empregado, o humor pode contrabalançar os aspectos conflitivos e polêmicos do dia a dia, abordar temas tabus como o sexo e a morte ou ainda desfilar as dificuldades sociais, econômicas ou pessoais de certos momentos de nossa história. Em sua coluna do dia 24 de janeiro último, Veríssimo faz uma paródia com a peça “Esperando Godot” do dramaturgo irlandês Samuel Beckett (1906-1989), conhecido como um autor do teatro do absurdo. Em “Esperando Godot” dois vagabundos (Vladimir e Estragon ) conversam sob uma árvore de onde não podem se afastar porque precisam esperar por um Godot que nunca chega. O espectador é convidado a compartilhar daquela espera e passa de inquieto e instigado à impaciente já que nada muda, nada acontece e nem mesmo Godot aparece. Durante décadas seus críticos questionaram o que o autor teria tentado dizer: seria esta impotência parte da condição humana, que condena a todos por seu desamparo, à espera de um Godot ( Deus?) que lhe traga alguma esperança? É sobre esta polêmica que Veríssimo decide intervir ao nomear sua crônica de “Entra Godot”. No mesmo cenário em que Vladimir e Estragon esperam Godot, eis que ele finalmente aparece e desconcerta aos dois personagens que já estariam acostumados a encenar indefinidamente a peça sem sua presença. Godot passa então a reivindicar sua parte na trama já que seu nome figura no título, mas se vê obrigado a contra argumentar diante do sentido que sua ausência teria para os outros personagens. É justamente por não se saber quem é ele, se existe ou não, se ele é Deus ou simplesmente representa a condição de solidão da humanidade e/ou sua crença em alguma salvação divina, que os demais personagens ganham forma em sua espera. Com a presença de Godot a espera fatalmente acabaria, e isso desconcerta a todos. O que fazer? Godot, Vladimir e Estragon acabam concordando que o fim da espera pode apontar para a liberdade ao invés da impotência. Graças ao livre-arbítrio do homem, Godot pode entrar na peça à revelia de seu autor e eles podem sim improvisar um novo fim. Sem dúvida uma bem humorada sacada que convida à reflexão sobre nossa condição humana, esta que pode ser interpretada como trágica em seu estreito nascer, viver e morrer ou simplesmente como algo em devir, que aposta na capacidade de cada ser humano em inventar e dirigir o complexo leme de sua vida. O próprio humor pode ser uma das lentes para se olhá-la.

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