domingo, 21 de março de 2010

Comoção

A palavra comoção cai como uma luva para o sentimento que inundou a mídia e a todos os que assistiram a triste notícia sobre a morte do cartunista Glauco e seu filho Raoni. Ficamos abalados, chocados, revoltados, perturbados. Passamos a buscar avidamente novas informações que pudessem nos dar alguma explicação lógica ou ao menos alguns motivos para o ato tresloucado do rapaz que atirou para matar. É natural que diante de fatos violentos que causem tamanha estranheza, busquemos uns aos outros para qualquer acréscimo de argumentos que possam compor alguma história verossímil, de preferência aquela que nos coloque bem distante da possibilidade de viver algo semelhante. No mínimo porque entrar em contato com a precariedade de nossas vidas e a “proximidade” da morte sempre nos apavora. Por isso a notícia divulgada inicialmente pela mídia de que o assassino seria alguém próximo a família, amigo de velha data de Raoni, só deixou de nos aturdir quando foi completada por afirmações sobre suas ligações com drogas, sobre ele ser filho de pais separados, ter sido criado pelos avós, ter antecedentes criminais. Rapidamente tais informações forneceram alguns chavões explicativos para o seu “surto” de loucura, confirmados no vídeo em que o rapaz , com uma aparência própria dos que estão fora de si, confessa (vocifera) seu crime, embora ainda sem motivos que nos confortem. Também é verdade que a maioria de nós ficou surpresa ao saber ser Glauco o fundador da Igreja Céu de Maria, uma seita organizada em torno do Santo Daime, mais conhecido por ser um chá com uma tradição ritualista de cura ao maximizar as experiências de estimulação visual e as sensações de contato, seja consigo mesmo, ou com forças sobrenaturais e divinas. A partir dos anos 80 muitos artistas embarcaram em seitas seguidoras deste chá seguindo a promessa da resolução de males como a dependência química e a depressão. Estariam aqui mais alguns indícios que nos permitem dizer de forma simplória, que em seu papel de “xamã”, Glauco poderia ter acenado ao rapaz com uma possível cura de seu vício da cocaína ao aderir aos rituais da seita. Mas Glauco tinha um algo a mais para a nossa história, o fato de ser famoso o que acrescenta à sua morte implicações diferentes para nós, ao funcionar como o despertar de um sonho, aquele em que imaginamos estas pessoas habitando o nirvana que almejamos, e que a morte e a loucura nos jogam na dura realidade. Como aprumar tais idéias sem caírmos em análises maniqueístas, como por exemplo, atribuir estes “desvios” simplesmente ao uso de drogas, este mal de nossos dias que assombra a todos os que têm filhos adolescentes? Talvez esta história conturbada da vida privada de pessoas que vem forçosamente a público possa ter outro papel, o de nos possibilitar pensar em um mais-além do óbvio. A verdade é que o uso de drogas é um destes temas complexos cujas significações assumem dimensões que não podem ser reduzidas ao patológico ou ao crime. Em uma sociedade em que ser feliz é uma premissa imperativa, os diferentes tipos de drogas ( legais, ilegais, medicinais, etc) funcionam como atraentes remédios diante das dificuldades que todas as vidas tem que enfrentar. Não tem sido facil convivermos com as incertezas sobre sermos bons ou vilões, competentes ou impotentes, amados ou indesejados, e nada como podermos afastar ou abafar nossas incertezas com algum tipo de anestesia mental.Ninguém poderia negar o quanto a medicina contemporânea nos acena com inúmeros medicamentos que prometem o acesso ao bem estar, qualquer coisa que impeça nossas angústias ou nossas insônias. Para os jovens em especial, por se encontrarem em um momento duro, de reposicionamentos, de direções a seguir, o fato de buscarem este tipo de escape quase sempre significa uma tentativa de prescindir das dores que as relações humanas impõem, temperados com as cores muitas vezes cinzas de suas histórias pessoais. O paradoxo é que nossa sociedade de consumo alimenta a todos com a promessa de que algum objeto de sua prateleira possa nos satisfazer, ou seja, de que podemos sim prescindir destes males de amor. E às vezes ao inferno do mundo das drogas não existe na vida de alguns, nenhuma outra opção razoável, de acolhimento, de novas possibilidades, ou senão existe sim um outro inferno, aquele em que ele é capturado pelos seus dramas de amor e de sexo. Aí é possível que só reste este espaço do “nada mais importa” tanto para os tiros que matam deliberadamente, quanto pela falta de razões que os sustentem. Ainda assim, no mesmo intuito de complexizar, é bom que lembremos que o vício não é uma escolha e sim um sintoma que clama por cuidados seja de pais, terapeutas, amigos, da sociedade enfim.

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