quinta-feira, 26 de janeiro de 2012

Ode aos rituais

Um amigo querido informava-me o quanto sua (única) filha andava mergulhada na construção de uma nova vida a dois. Percebendo seu semblante apreensivo perguntei-lhe como ele estava vivendo este momento. Seu rosto se iluminou ao me responder prontamente que já havia tido “aquela” conversa com o futuro genro. “Foi uma exigência minha - completou- afinal os rituais são sábios.” A quais rituais ele se referia? Sabemos que os rituais de uma determinada cultura são ritos mitológicos. E ainda que “mitologia” invoque uma volta ao estágio primitivo de nossa espécie em que nosso conhecimento sobre a condição humana e sua relação com a natureza era quase nulo, de certa maneira ela se mantém ressignificada, já que os motivos da imaginação mítica estariam sempre ligados à busca do que ainda nos escapa sobre as nossas origens, mas principalmente como damos sentido (ou significamos), como entendemos e interpretamos nossa existência. É difícil imaginarmos um fio evolutivo para este entendimento, pois teríamos que levar em conta um movimento incessante entre a tradição e a inovação, entre forças produtivas e criativas em todos os domínios da vida cultural. Pensemos por exemplo que antes da criação de leis, era o sistema de tabus que regulavam as ações humanas e a vida social de determinado grupo. Ao mesmo tempo em que cada membro tinha uma série de deveres e de obrigações, os inúmeros ritos ameaçavam paralisar suas vidas, com suas infindáveis restrições de comer ou não certos alimentos, andar ou ficar parado em determinados locais, pronunciar exatamente certas palavras e por aí vai. A proibição contava com o medo da transgressão e seus rituais de purificação, ao mesmo tempo em que promovia uma obediência passiva. Hoje somos livres, graças ao fato de acreditarmos que somos capazes de refletir sobre o bem e o mal, fazer escolhas e ser responsável por elas. Nossa relação com nossos semelhantes é regulada não mais pelo medo e sim pelo cumprimento de leis sempre renováveis e pela ética. Apostamos em nosso amplo conhecimento sobre nós, os outros e o mundo para entendê-los e promover uma convivência possível. Contamos com a culpa e a vergonha como balizas para nossos pensamentos e atos. Há um novo “zeitgeist” ou “espirito da época”, um novo ethos. E novos desafios para se pensar sobre o que transgride ou não se inclui neste espírito em suas infinitas  razões. A narrativa mítica tanto serve para acomodar o que é aceitável quanto o que ultrapassa a percepção ou  a explicação racional do mundo. Talvez a literatura, mais do que a filosofia, seja a herdeira da mitologia nesta tarefa de transmissão cultural, ao recontar e adaptar os mitos, incluindo aí este eterno e difícil papel dos pais na função de apresentar, escolher e compartilhar (transmitir) o mundo humano e seus símbolos para suas crianças. Crianças que precisam cumprir outro  importante “ritual”, ao abrir todas as janelas possíveis que a ajudem a transpor o ninho familiar, e assim promover a continuidade da roda da vida humana. Meu amigo falava como se a complexidade de seus sentimentos em relação a esta “passagem” de sua filha, pudesse ser exorcizada naquele ritual. Tinha razão. O ritual contém esta história de nossa história. Era com pesar que ele encerrava seu papel de homem e adulto privilegiado de sua filhinha. Talvez tivesse sido duro encenar a “entrega das mãos” dela para o futuro genro. Mas ele estava satisfeito pela sensação de missão cumprida. Era bom perceber que sua menininha havia crescido e transformara-se em uma mulher adulta e autônoma. Melhor ainda era vê-la feliz! Afinal se há algo extremamente “moderno” é o fato de que cada um de nós precisa se responsabilizar por estas tarefas civilizatórias, e a de sermos pais carrega o severo peso da perfeição. Vigiamos a felicidade dos nossos filhos como medida de nossa competência.

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