A menos de uma semana, o artista chinês Ai Weiwei, famoso
por seu trabalho permanentemente provocativo, denunciador e político, que já lhe valeu uma detenção de
quase três meses pelo governo de seu país, escreveu um texto indignado para o jornal britânico The Guardian (traduzido
aqui pela Folha de SP). Mais que indignação, havia um tom de decepção diante da
informação sobre a operação americana de monitoramento dos serviços de
inteligência dos Estados Unidos denunciado pelo técnico em informática Edward
Snowden, que trabalhava há 4 anos na NSA (Agência Nacional de
Segurança) e tinha acesso a dados privados de usuários de internet e telefonia.
Tendo vivido 12 anos nos Estados Unidos, Weiwei exaltara a grande tradição de
individualismo e privacidade deste país que sempre se contrapôs ao desnudamento
sistemático dos cidadãos chineses, acostumados com o abuso do poder de Estado.
Ao ler seu texto me lembrei de um filme de Spielberg (2002), Minority Report (relatório
da minoria) – A nova lei, uma ficção sobre o funcionamento da sociedade americana
no ano de 2054, em que a despeito do avanço ininterrupto da tecnociência , o mundo
havia se tornado um lugar inseguro e violento. Em 2048 o índice de homicídios teria
alcançado proporções alarmantes, o que contribuíra para que a cidade de
Washington experimentasse um projeto piloto - o Programa Pré-Crime - que em
seis anos havia conseguido banir os crimes utilizando-se de uma tecnologia
biovirtual onde três “precogs” (pessoas altamente sensitivas) projetavam
imagens de suas previsões de assassinatos com o dia e a hora dos crimes. Graças
mais uma vez à tecnologia, fornecidos o nome da vítima e do assassino, uma
elite de agentes policiais prendia o criminoso antes mesmo que o delito acontecesse.
Dilema moral: se alguém é preso antes de cometer o crime, como pode esta pessoa
ser acusada de assassinato? Seria lícito incriminar alguém apenas pela sua
intenção? Apesar deste paradoxo um forte lobby pressionava a população a
aceitar o programa e assim estende-lo por todo o país, já que eliminava os
assassinatos nos Estados Unidos. Estaria assim consolidado um mundo futuro, em
que haveria um sistema criado para coibir a violência e proteger os indivíduos
deles mesmos, ou melhor, de seu mal. Mas curiosamente este futuro não seria uma
possibilidade, uma escolha em aberto para os indivíduos, já que a “pre-visão”
seria considerada como algo que realmente aconteceu. Quando John Anderton (Tom
Cruise), o policial mais competente da equipe, vê através dos precogs, que
matará um desconhecido em menos de trinta e seis horas, inicia por conta
própria uma investigação cheia de ação que culminará no desmantelamento do
sistema antes “perfeito”. Ai Weiwei denunciava esta contradição em seu texto,
ao apontar que graças às suas capacidades técnicas, os Estados poderiam
facilmente conseguir dados sobre seus cidadãos visando controlá-los, interferindo
de forma abusiva em seus direitos individuais. Em audiência no senado americano,
o diretor da ASN general Keith Alexander disse que a vigilância é necessária
tanto para "defender a democracia e as liberdades civis dos
americanos" quanto para manter o país em "segurança". Mas Weiwei
insiste no fato de que instaurada uma outra dimensão de medo e insegurança – seja
pela possibilidade de não haver mais liberdade ou pela abolição da confiança
dos cidadãos para com seus governos, perde-se o equilíbrio que mantém a
“civilização” e que está na base de uma democracia. Não passaram despercebido
nem aos brasileiros nem ao mundo, as surpreendentes manifestações de protestos
dos jovens iniciadas em São Paulo, que acabaram por replicar em várias capitais
do Brasil (e outros países em um apoio solidário emocionante). Por trás dos
singelos 0,20 centavos reivindicados, os gritos clamavam por um cuidado e
respeito dos governantes e políticos para com sua população, para com suas
cidades, seu país. Que acordassem para a necessidade de reconstruir um espaço
político com instituições que não estivessem falidas ou sucateadas por um
modelo de interesses de poder e grana. Que devolvessem as ruas, as cidades, os
espaços públicos aos jovens, para que eles pudessem continuar acreditando em um
futuro. Uma revolta contra o descaso. Uma reivindicação de Jovens, que em
diferentes épocas históricas buscam ativamente uma versão de seu tempo para
afirmar seus sonhos e ideais, e lembram a todos os mais velhos, que são eles
que abrem caminhos para novas verdades, novos movimentos transformadores de
nossa existência. Mais, que não há convivência possível sem um bocado de
dignidade.
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