Mas porque precisava ser desta maneira? A vida estaria lhe dando uma chance ou lhe punindo? Vitória sentia-se confusa, justo ela, tão intelectualizada, sempre rápida no gatilho, a dar palpites e sugestões ou a resolver problemas cabeludos (seus e de outros). A família- todos do interior de Minas- sentia orgulho desta menina e não lhe poupava elogios. Fazia tempo que ela havia se mudado para o Rio de Janeiro atrás de seus sonhos e sim... podia dizer sem titubear que muitos deles se realizaram. De jornalista famosa passara a cineasta, algo que imaginara desde a sua infância, quando “dirigia” a turma da rua improvisando cenários e vestimentas. Era ela quem escrevia o roteiro, mas costumava incentivar todos a escolherem quem seria o melhor ator para cada papel. Esta estratégia não só evitava os conflitos advindos dos ciúmes e das rivalidades, como conferia maior legitimidade aos eleitos. Os “estúdios” de seu Cinemoção ficavam no enorme quintal de sua casa e seus pais jamais se opuseram, ao contrário, até palpitavam e algumas vezes ajudavam na composição dos cenários. Sua mãe, ah... ela era o máximo! Que saudades daquele olhar interessado, investido de energia. Tinha certeza que aquela sua paixão pela vida a alimentara e a movera o tempo todo. Por isso não encontrava palavras para descrever a “cena” do cotidiano de um portador de Alzeimer, este sujeito que rompe os fios de sua memória. Consultas ao Google, aos neurocientistas, aos familiares de outros atingidos por esta doença não puderam responder aquela pergunta que insistia: por quê? Como é possível que ainda saudável, resultados de exames apontando a saúde de uma “jovem”, sua mãe havia abandonado sua bem instalada identidade, sua mais valiosa morada? Porque ela havia preferido este não lugar, sem história, um caminho sem volta, parecendo não se importar em perder-se de si mesmo? Tal como um “filme”, Vitoria tentava achar o fio que pudesse dar sentido a este quadro dramático. Era muito difícil estar ali ao seu lado, ao lado daquele corpo tão conhecido e tão querido e perceber que em algum lugar dele havia um “ralo” sugador de histórias passadas, das quais ela se sentia parte. História de uma mulher e mãe tão sabida, centro nervoso da casa, daquelas que levavam a palavra aonde ainda não existia. Que sabia tecer devagarinho as asas de seus filhos e separar-se deles na hora certa. Todos voaram. Vitoria se surpreendia ao perceber, no entanto, quanto ela se mantinha presente na ausência. Saber que ela existia, que estaria ali para recebê-la, para atender seus telefonemas a qualquer hora e dia, fazia tanta diferença! Não tinha se preparado para perder esta mãe. Havia reservado estes dias para estar com ela, ficar ali ao seu lado, olhando com atenção cada menção daquele corpo às vezes acenando com alguma possibilidade de resgate de seu eu, às vezes alheia a tudo e a todos. Pretendia não adiar este olhar para o passado, não deixar para traz esta história. Queria ser uma espécie de memoria-prótese de sua mãe. Quantas vezes mencionara aos amigos quão “especial” era ela, e como admirava sua capacidade de conhecer a si e aos outros, fato que usava para intervir com delicadeza ao menor sinal de desamparo ou pedido de socorro. Uma máquina de compor, organizar, traduzir, interpretar. Que mundo estranho ela habitava agora? Aos 78 anos, no auge da “velhice”, o conforto e o refúgio dos idosos costuma ser suas lembranças do passado. Alguns com tons mais melancólicos pelo que não puderam realizar, outros a cotejar o passado e o presente com um olhar mais justo. Tantos filmes são baseados nas memórias de prazeres e descobertas de alguém, histórias que nos fazem chorar, arrepiar, acelerar nossos corações. Ali, em silencio, de mãos dadas, Vitoria imaginou uma das cenas de seu próximo filme, as duas, mãe e filha, conversando sobre a dor da morte de seu pai. Vitoria a lhe garantir a possibilidade de ela inventar novos laços para ocupar o lugar dos perdidos. A impedir que sua memória-história se perdesse e com ela a sua paixão pela vida.
quinta-feira, 27 de outubro de 2011
segunda-feira, 24 de outubro de 2011
Este seu olhar
Sentia-se cética demais para levar adiante aquele papo sobre “mau olhado”. Resolveu dar uma volta, beber um copo de água, mas aquele mal estar não lhe deixava. Se desse corda aos seus impulsos voltaria àquela roda de conversas e endossaria o coro dos que já haviam se sentido vítima do famigerado olho gordo. Tantas histórias. Mas mesmo afastada dali não podia evitar que algumas imagens de pessoas viessem à sua memória. (Suspiro). Não. Sua autocrítica não lhe permitiria arremessar a responsabilidade de seus infortúnios a outros, ainda que algumas destas figuras desenterradas de suas lembranças pudessem desfrutar de certa unanimidade quanto ao adjetivo (amedrontador?) de invejoso. Não devia ser por acaso que a inveja figurava entre os sete pecados capitais e muitos de seus portadores fossem personagens famosos na historia da literatura. De Iago (da peça de Shakespeare) que invadido por este “líquido mortífero” destrói a vida de Otelo ao leva-lo a matar injustamente sua amada Desdêmona e depois enlouquecido de remorso, a si próprio, à Rainha Má, cujo espelho não lhe deixa esquecer que Branca de Neve existe e é portadora de tudo o que ela deseja ter/ser, ou ainda o trio da Madrasta e suas duas filhas, que tentam impedir a bela Cinderela de comparecer ao baile promovido pelos reis à caça de uma esposa para o príncipe, e depois, de experimentar o sapatinho de cristal que lhe pertence. Sábias histórias infantis que permitem a nós crianças identificarmos nossos traços mais vis ainda que seja para imagina-los bem longe de nossas mentes, habitando apenas aqueles seres perversos ou asquerosos. Sentir inveja dói. Perceber-se alvo dela é ao mesmo tempo enlouquecedor e paralisador. E é por “conhecermos” quão devastador pode ser este sentimento que atribuímos força ao “olhar” às nossas costas, pronto a nos devorar, arrancar nossas entranhas, se apossar de nós. (Ufa!). O desconforto aumenta, sente-se inquieta com estes pensamentos e claramente dividida quanto ao rumo de suas digressões. De um lado tem ganas de dar vazão a estas rememorações, voltar à infância, não evitar a percepção de sua própria inveja, esta emoção viva e marcante, de cor rubra, que só pode ser incômoda quando somos alvo, porque sua saliva quente e raivosa nos é familiar. Quantas vezes se é surpreendido por este insuportável ruído ao constatar que uma outra pessoa consegue ser ou ter algo que se deseja ou que se imagina que perdeu? O ideal seria poder fazer uma espécie de acordo com esta luta interna, ao sustentar as lembranças da invasão sorrateira da inveja em seu ser, mas não mais deixar de lado a experiência única de saber-se personagem passivo do “olhar” faminto e raivoso da inveja de um outro. Afinal a força deste olhar malévolo e devastador (mesmo quando seu portador não o reconhece) acompanha a própria historia da humanidade e desde os tempos mais remotos a sabedoria popular se encarregou de inventar medidas protetoras, algumas universais. Quem não conhece a figura das benzedeiras de “quebranto” - aquele estado de falta de vontade e esmorecimento geral que toma conta do corpo principalmente das crianças indefesas expostas ao olhar dos invejosos ou mal-intencionados? Ou a figa, um amuleto muito utilizado para afastar seus efeitos? Quando ainda não sabíamos que a inveja era tão humana, quase parte de nosso DNA, era mais fácil imagina-la como uma “emoção má” e passível de ser eliminada. Ser benzida por uma curandeira podia trazer um alívio contra as forças invisíveis do mal dos outros. Duro mesmo parecia ser conviver com o saber-se passível de sentir a mais venenosa das emoções. E era isso que iria dividir com a turma. Que atirasse a primeira pedra quem nunca sofreu deste mal.
quarta-feira, 12 de outubro de 2011
A era D S J (Depois de Steve Jobs)
No ultimo dia 5 de outubro estreou em São Paulo, no SESC Belenzinho "Os Náufragos da Louca Esperança", uma peça de teatro inusitada, tanto por sua companhia (Théâtre du Soleil, França) , cuja historia se mistura ao cenário ideológico dos anos 60 (e as apostas em um mundo socialmente mais justo), quanto pela escolha do tema, baseado em um livro póstumo de Julio Verne. Com mais de quatro horas de duração e um pequeno intervalo de 10 minutos, a encenação surpreende (agradavelmente) em todos os sentidos. Conhecida por manter um trabalho alternativo de criação, articulado ao próprio funcionamento da companhia que participa das decisões e interfere nas direções dos projetos, o teatro de Ariane Mnouchkine consegue manter vivo na atualidade um engajamento social e uma dimensão crítica em relação ao mundo em que vivemos. Com algumas pequenas alterações a historia do livreto de Julio Verne - um grupo de pessoas que no final do século 19 deixa a costa do Reino Unido, parte para a Austrália em busca de uma vida nova, mas naufraga próximo a uma ilha da América do Sul - será o mote para a companhia recriar em cena, com os recursos artesanais do teatro, uma filmagem de cinema mudo no sótão de um restaurante francês, às vésperas da Primeira Guerra Mundial. Ou seja, o ano é 1914, o século é XX (com sua aura de Luzes e Modernidade), o cinema acaba de nascer, as “loucas esperanças” estão espalhadas, mas começa a guerra, justamente enquanto estes atores tentam filmar a historia do grupo de náufragos que acreditam poder enfim criar uma nova sociedade - uma vida civilizada fora da civilização- mas que acabam se matando um ao outro porque por diferentes motivos, são capturados pela possibilidade de encontrar (e se apossar do) ouro nestas terras. A guerra interrompe a gravação do final do filme. A peça acaba.No mesmo dia 5 de outubro morre Steve Jobs, imediatamente alçado a herói do nosso século e ao “hall da fama” ao lado dos que contribuíram para as grandes reviravoltas da vida humana. Um homem que nos ofereceu o que ainda nem sabíamos que desejávamos, um gênio visionário e criativo que elevou a tecnologia tanto a um objeto de culto quanto de consumo diário. Com a família iPod, iPhone e iPad, não precisamos mais de relógios, câmeras, álbum de fotos, filmadoras, calculadoras, calendários, rádios, gravadores, GPS, agenda de telefone, de compromissos, etc, etc. Há um mundo infinito na ponta de nossos dedos, que pode ser transportado junto ao nosso corpo, para qualquer lugar. Podemos consultar sobre o tempo, as pessoas, nossas dúvidas, nossos amores, escrever, ler, enviar mensagens, jogar, rir, chorar, assistir a filmes, ouvir qualquer música. A peça de Ariane Mnouchkine nos transporta ao mundo das utopias humanas que de forma cíclica e permanente nos embalam e cumprem seu papel de nos fazer caminhar. Mas elas demandam uma certa distancia para que não nos deparemos com o real de nossa humanidade. A figura (agora já mítica) de Steve Jobs vai aumentar o panteão de nossos heróis, todos meio humanos meio deuses já que em suas vidas conseguem combinar pitadas de inovações, arte e genialidade, mudando rotas, alterando sentidos, abrindo novos horizontes.
quinta-feira, 6 de outubro de 2011
Queremos uma boa (vida) morte
Todo ano há certa expectativa em torno dos laureados pelo Nobel de Medicina, premio que costuma dar destaque a pesquisas e descobertas de cientistas imersos na busca de respostas às perguntas aflitas sobre ruídos, descontroles e enigmas de nosso corpo ou em novas formas de suplantar seus limites. No ano passado o britânico Robert Edwards foi o escolhido por ter desenvolvido a técnica (fertilização in vitro) em que óvulos são fertilizados fora do corpo humano e implantados no útero. Neste ano foi a vez de três cientistas (um francês, um americano e um canadense) que desvendaram segredos do nosso sistema imunológico, abrindo caminho para novas vacinas e tratamentos contra o câncer. A nota destoante ficou por conta do fato de um deles, o canadense radicado nos EUA Ralph Steinman, ter falecido três dias antes de ser anunciado como um dos vencedores do premio. Diagnosticado com câncer de pâncreas há quatro anos, Steinman prolongou sua vida graças à aplicação da imunoterapia à base de células dendríticas que ele mesmo criou. Para lá de moderno, as notícias sobre possíveis soluções para as “anormalidades” de nosso corpo passaram a ser destaques na mídia e assunto a ser debatido entre todos. Afinal nossas vidas atuais estão orientadas em função de nossa relação com nossos corpos (até o nosso amor próprio) e tudo o que desejamos é que ele seja o mais perfeito, saudável e “técnico” possível, a fim de garantir-nos prazeres, mas principalmente vida. E se a avaliação de uma vida bem vivida muitas vezes está articulada a uma boa morte, no caso do pesquisador recém falecido a dignidade fica por conta de seus esforços em lutar, pesquisar, apostar na possibilidade de superar os “invasores” cancerígenos indesejáveis de seu corpo. Bem longe de uma era que admirava e reverenciava certos heróis prontos a morrer ou a enfrentar sacrifícios corporais e superar dores sem reclamar, estamos de bem com nossa busca sem fim de meios que nos protejam das dores do viver e que nos ofereçam visões (versões) menos dolorosas do morrer. A tecnociencia é hoje, sem sombra de dúvida, aquela que mais se assemelha a uma mãe prometeica pós-moderna. Quase todos nós, mesmo os mais desconfiados, nos rendemos às suas benesses e bendizemos suas descobertas de novas e melhores ferramentas que possam trazer conforto e bem estar. O júbilo aumenta quando as noticias respondem ao apelo de um corpo que deseja “viver” mais e melhor. O paradoxo é que na medida em que a existência de nosso corpo ganha esta dimensão inusitada, nossa vigilância sobre sua saúde e aparência se amplia e fica muito mais detalhista e obstinada. Manter o corpo perfeito e saudável exige de cada um não só cuidados, mas sacrifícios e renúncias importantes e portanto quanto mais valoroso é, mais ele se torna alvo de preocupações e mais nos tornamos sensíveis à sua presença. Quase a desbancar a antiga aura de nossa alma, o corpo é hoje o lugar privilegiado de manifestação do sentido da vida, nosso espelho, e por isso palco de muitos de nossos conflitos que, a despeito de nossa resistência, muitas vezes insistem em se tornar visíveis através de seus órgãos, tecidos, células e sistemas. Nossas doenças (orgânicas ou psíquicas) são nossas formas de buscar um equilíbrio para as nossas relações com o mundo e com os outros. Mas certamente não há como negar nossa subserviência ao mito cientifico ao redor do qual todos oramos para que continue a nos premiar com o aprimoramento e a sobrevivência da espécie, e assim seguimos alternando entre formas inimagináveis e protéticas de nos reproduzirmos (por exemplo) e a corrida atrás de novas e mais eficientes defesas contras as inesperadas, (as vezes) surpreendentes e muitas vezes enigmáticas perturbações (físicas ou morais).
sábado, 1 de outubro de 2011
Cibervida
Para alguns um profeta, para outros apenas um otimista, mas para ele próprio, um estudioso da cultura e dos impactos que as novas tecnologias já anunciam sobre o futuro de nossas vidas. O filósofo tunisiano Pierre Levy, professor do Departamento de Comunicação da Universidade de Québec, Canadá, tem sido um incansável arauto da cibercultura e da crescente virtualização de nosso cotidiano. Fugindo do pensamento apocalíptico, ele prefere mapear as diversas experiências políticas, atividades militantes e comunidades virtuais na Internet que, a seu ver, promovem o desenvolvimento social e político do mundo contemporâneo e contribuem para um processo geral de emancipação. Às questões levantadas sobre o ainda enigmático futuro deste sistema técnico e universal chamado Internet, ele lembra que graças a esta rede mundial, todos podem estar interligados num mesmo espaço - o ciberespaço - e num mesmo tempo presente, estabelecer contatos de um para com cada um, de um para com todos, e de todos para com todos. Que este ciberespaço produzido pela coletividade humana não seria somente uma rede de conversas on-line, mas promoveria um reconhecimento das competências pessoais de cada indivíduo, e por decorrência incidiria em novas maneiras de se entender a vida de cada um e de todos no planeta. De fato, a facilidade de acesso a um mundo ilimitado de saberes e fazeres, conexões e intercâmbios muda o entendimento que temos principalmente sobre a cultura porque abre um inusitado espaço (leia-se liberdade) tanto para a criatividade quanto para a produtividade individual ou coletiva. De certa forma pode-se visualizar uma radical democratização no acesso a novos meios de produção e de conhecimento e a boa nova seria que de seres passivos, qualquer um poderia ser agente do processo cultural mundial e enriquecer os diferentes enfoques que se cruzam nas fronteiras da ciência, tecnologia e arte. Enfim, para Levy a digitalização da cultura, somada à corrida global para conectar todos a tudo o tempo todo, torna o fato histórico das redes abertas algo a ser pensado e refletido. Mas longe de anunciar um novo “Messias”, ele tenta mostrar que isto faz parte de um movimento de continuidade na incansável tarefa humana de expandir seu conhecimento, que por isso pode e deve ser utilizado como recurso para se vislumbrar novas maneiras de tornar a exclusão menos desumana, de reduzir a miséria, e de elevar o nível da educação mundial, ou seja, de se fazer política. E se estas tarefas há algum tempo fazem parte do que se espera de educadores, políticos e empresários ele convida a todos a assumirem sua porção de responsabilidade. Em sua visão a internet pode permitir que a democracia se imponha (de cima para baixo) ao desvendar um mundo em que qualquer pessoa com habilidades e qualificações pode ser reconhecida em qualquer parte do globo. E se há muitas comunicações transversais numa sociedade, se a informação circula facilmente e podemos ter acesso ao que ocorre “fora”, acesso a documentos complexos, a informações que antes pertenciam a uma pequena minoria, se é possível mapear o destino do dinheiro (publico ou não), aumenta-se a força dos consumidores para um mercado internacional mais transparente, convoca-se a justiça a perseguir aqueles que fraudam, e por aí vai. Ou seja, abre-se uma nova rota para a sociedade que pode deixar de esperar sua salvação via políticos (ou líderes religiosos) diante da possibilidade de cada cidadão poder (ele mesmo) exigir prestações de contas de seus direitos a todos os que têm como função representar o povo. Acaba o reinado do segredo, das decisões veladas, dos lobbies que manipulam nas sombras. De olho em uma escala universal e antropológica da evolução do mundo Pierre Levy prefere salvar o bebê e jogar a agua usada do banho fora. A seu favor está a própria historia da internet e suas ferramentas que se confundem com a genialidade de pequenos grupos de jovens aficionados que aqui e ali inventam caminhos ou territórios dentro deste novo mundo, e mostram mais uma vez que eles são os atores da inovação cultural. Se a cultura digital não cessa de oferecer novas possibilidades, muitos jovens têm respondido a elas não só ao se adaptar rapidamente às suas tecnologias, mas oferecendo-se como agentes da construção de novos conhecimentos, novas maneiras de se relacionar, de se comunicar, de se posicionar, de conviver uns com os outros e com o mundo. Uma verdadeira arena humana que amplia sobremaneira a diversidade de opções e ultrapassa as fronteiras dos países, das disciplinas e das instituições. Uma força que de certa maneira cria um alento virtual de amparo e pertencimento, ainda que a liberdade, a infinidade de opções, a possibilidade de ampliar as fronteiras de nosso conhecimento não nos garantem discernimento, agir moral e preocupação para com o outro. Continuamos passiveis do melhor e do pior e quanto a isso, sempre estaremos por nossa própria conta. Afinal a ética nasce do reconhecimento da insuficiência da moral e da lei para dar conta dos atos humanos.
quinta-feira, 29 de setembro de 2011
Politicamente Incorretos
É no mínimo engraçado pensar nas fronteiras do correto e do incorreto como critério para as regras de cortesia ou de polidez necessárias ao nosso convívio, no mundo atual. Principalmente quando ainda “respira” a cartilha dos bons costumes que costumava ser parte importante do legado entre gerações no mundo moderno. Havia ali uma separação importante e confortável para se transitar entre a vida pública e a privada. Na primeira, todos deveriam se conter e seguir religiosamente as normas de boa conduta fosse para se dirigir às autoridades, aos subalternos ou mesmo aos pares. As “gafes” tinham um peso danado no currículo moral de cada um. Na intimidade dos lares, ali sim, era possível se desfrutar de liberdade para amar, odiar, blasfemar, judiar, enfim expor suas entranhas. Esta dicotomia consensual permitia a cada um desfrutar de um código claro para escolher entre o certo e o errado, o bem e o mal, o normal e o transgressor. Mas a rigidez dos julgamentos produzia mais um moralismo do que um agir moral. Isto porque é mais fácil e tranquilo se imaginar de posse de um saber sobre como, o quê ou porquê cada um deve ou não fazer/dizer algo. Parece que não precisamos cavoucar as razões, avaliar caso a caso ou as circunstancias. Aos poucos o mundo privado foi se misturando ao público e as pessoas convocadas a refletir mais não só sobre seus pesares e ímpetos como aos dos outros, assim como aos meios em que transitam. À liberdade individual que cada um conquistou corresponde uma maior responsabilidade sobre suas escolhas. Zapeando a programação da TV, dias atrás, me deparei com um programa de entrevistas que falava sobre alguns comerciais que estão sendo veiculados. A pauta? Celebridades que não se importavam em ser apresentadas por suas peculiaridades não tão engrandecedoras, ou seja, em serem motivos de piada. Quem já não assistiu o grandão Ricardo Macchi e seus 1,80metros - malhado por seus dotes limitados como ator – atuando ao lado do “ um metro e meio” e consagrado ator Dustin Hoffman ? Ou o lutador musculoso e campeão mundial Anderson Silva de terno branco a ecoar sua voz fininha em um comercial de fast food? Constrangedor ou engraçado? Ambos? A verdade é que se fosse possível reduzir nossa escalada a uma reta esta estaria sempre em ascensão como a nos lembrar que a tal evolução humana é permanente embora também o seja sua complexidade. E a evolução, como já dizia Darwin, está sempre a modificar o que já existe, assim como a buscar uma regulação ou um equilíbrio que garanta nossa sobrevivência (biofísica, psíquica, moral). Sem dúvida um raciocínio demasiadamente simples para questionarmos o lugar (de suma importância) da responsabilidade moral e com ela temas complicados como a liberdade, a espontaneidade e a preocupação com o outro. O rir de si mesmo, por exemplo, quando é o resultado de uma percepção aguçada sobre si e o outro, sobre a falta de garantias e de certezas e a necessidade de cada um assumir por sua conta e risco as agruras do viver, provoca uma identificação (permite ao outro sentir-se um igual) ou seja, poder ficar a vontade com suas faltas, seus altos e baixos,temores, amores e dores. Claro que não podemos deixar de ter uma moralidade vigente a cada época que desfrute de um acordo coletivo. Mas não dá para calcular previamente quando podemos “transgredir” de forma positiva certas fronteiras. O que ontem era constrangedor hoje pode ser engraçado. E isso não deve ser visto como um passo atrás e sim como uma evolução e com ela novos desafios.
segunda-feira, 26 de setembro de 2011
De mãos dadas
Não conseguia pegar no sono. Aquele vazio insuportável lhe imobilizava a alma. Ninguém pode dormir se o “dia seguinte” não existe mais, não há nada agendado, nem as obrigações de praxe, nem algo novo ou prazeroso. Nada. O cérebro pensante e o coração pulsante estavam no modo “pausado”. Pausa necessária, pois não poderia suportar nem mais uma gota de dor. Estranha sensação esta de se estar entre a dormência de quem tenta impedir a angustia e um deixar-se apagar, morrer. Não, não queria morrer. Pensar sobre isso lhe devolvia um pouco a sanidade e com ela as lembranças. Sentira certo alívio quando Pedro morrera há um ano, depois de tantas internações, tanto sofrimento. Seus olhos pediam para ir, para descansar e ela chegara a se convencer de que não havia nada melhor a acontecer no momento. E se era inevitável que ele fosse, passou a imaginar sua vida sem ele (depois de quase 42 anos juntos). Tentava visualizar-se forte, viva e disposta a encarar esta perda como uma mera contingencia do viver. Até sua vida profissional poderia ser retomada assim como alguns velhos projetos. Tudo parecia fazer sentido. Mas não agora. Nem que quisesse poderia prever o rombo que a falta dele faria. Também não encontrava palavras para descrever seu estado, o que deixava todos a sua volta, bem aflitos. Sabia que alguns conseguiam falar sobre sua própria dor, construir frases que narravam este estado absurdo, mas eram poucos, bem poucos. Não por acaso o mundo reverenciava os poetas, sempre atentos às dores de perdas e paixões humanas, as quais descrevem inventando vocábulos, usando metáforas ou comparando-as com os enigmas do universo. Não saberia explicar porque seu casamento fora tão excepcional, para ela um mero encontro de duas almas que prezavam a vida a dois. Parece pouco? Sim e não. Como construir uma parceria tão longeva e rica sem compartilhar o valor das trocas, da cumplicidade e do carinho? Depois de tantos anos juntos, a vida a dois fica quase “vida a um”. Não porque estivessem sempre juntos ou tivessem as mesmas ideias e crenças sobre tudo (ao contrário), mas porque haviam se acostumado a falar um para o outro o que pensavam, desejavam, sofriam ou causava indignação. Evitava confessar que ainda falava com ele mesmo sabendo que não ouviria respostas, contestações, apoio. Era exatamente isso: uma parte dela havia ido embora para sempre. E se a principio ela considerou a hipótese de construir algo novo, agora esta coragem andava sumida. Não foram poucas as vezes em que ambos haviam antecipado a velhice. Brincavam de adivinhar se pareceriam com aquela senhora gordinha, ou aquele careca barrigudo, se seria possível passear de mãos dadas (como era de costume) ou se cada um precisaria apoiar seu braço no outro para dar conta dos reumatismos e desconfortos musculares. Era preciso apagar esta cena, com certeza, para que o dia seguinte começasse a existir.
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