segunda-feira, 11 de agosto de 2014

A história de nossos ódios

2014 marcam os cem anos da primeira guerra mundial, que também é considerado um marco na história humana, pela “transgressão” inaudita dos pactos civilizatórios que os dois séculos anteriores haviam se esmerado em construir. Passados cem anos, tornou-se comum assistirmos “pequenas guerras” em que dois ou mais agrupamentos humanos se declaram inimigos e concedem a si o direito de matar uns aos outros. As notícias estão longe de serem escassas e parciais. São muitas. Uma overdose de fotos, vídeos, declarações, relatos, discussões mais aprofundadas em colunas e blogs, em jornais, TV, redes sociais, a favor de uns ou de outros, deixando a cada um a escolha de viver sua perplexidade e indignação por mais uma matança absurda, ficar indiferente e satisfeito por não fazer parte ou estar bem longe desta loucura, ou se engajar na busca de sentido para as formas de violência consentidas que vivemos. Foi o que fez um grupo de intelectuais brasileiros e estrangeiros capitaneados pelo jornalista e filósofo Adauto Novaes reunirem-se de agosto a outubro deste ano no SESC Vila Mariana SP, para pensar as “Fontes Passionais da Violência” na oitava edição do ciclo “Mutações”. O nome Mutações não é por acaso, e agregando temas como Novas configurações do mundo, A condição humana, A experiência do pensamento, A invenção das crenças, O elogio à preguiça, etc. tem pretendido pensa-los à luz das mudanças radicais que vivemos em todas as nossas atividades, desde que a era da biotecnociencia provocou uma revolução antropológica e cultural inimaginável. O tema elegido para este ano, a violência, também não é tarefa fácil de pensar. Ainda que seja um tema que invada o cotidiano de todos na tarefa de convívio que inevitavelmente nos leva ao confronto inesperado com pequenas infrações, delitos e injustiças (nossas ou de outros) e provocam reações de indignação, intolerância, e ódio irascível, não costumamos falar da violência como algo inerente a todos os seres humanos, ou nós mesmos. Quase como uma forma de negarmos a possibilidade de sentirmos raiva, ódio, sede de vingança, vontade de bater/matar ou tripudiar alguém, preferimos nos juntar para acusar os “infratores”. Nos dois séculos anteriores, mesmo após a hecatombe provocada pela segunda e mais bárbara guerra mundial, ainda nos restava apostar que a sociedade e o Estado com suas normas organizadoras, protetoras e mediadoras (promovidas pela educação e pelo direito) zelariam pelos vários papéis assumidos nos grupos sociais e de trabalho, o que permitiria uma convivência solidária e garantiria a coesão social. Também os delitos e crimes (ou as exceções) estariam devidamente previstos e enquadrados. O que mudou? Embora haja uma grande parte que acuse ora a instalação endogâmica do capitalismo com sua captura perversa nas luzes do consumo desastrado/exacerbado, ora a ciência com suas verdades mais técnicas do que humanas, e sua veia prometeica na satisfação sem tantos custos ou riscos, é interessante pensar que somos hoje muito mais uma grande “irmandade” de indivíduos cada vez mais próximos de todos que habitam o mundo. E, embora esta “irmandade”, de formas as mais variadas tente marcar suas diferenças, o que a caracteriza é o sentimento de que as grandes instituições validadas mais ou menos consensualmente como protetoras ou mediadoras do nosso convívio estão com seu prazo vencido, sentimento típico de um modelo organizacional social de transição que provoca descrença diante do colapso do tradicional e em cujo horizonte não se avista mudanças sociais importantes. Em alguma dimensão, desconfiamos que estamos sozinhos, que nossos sistemas estão instáveis, e que teremos que nos inventar ou reinventar por conta própria, o que nos deixa quase sempre desamparados quando não aterrorizados. É possível que a maneira como cada um de nós puder fazer a gestão de nosso convívio com os outros, dirá muito sobre nós daqui para frente. A gestão de si, ou melhor, como administramos nossos ódios e amores, a favor ou contra o “processo civilizatório”, será um grande valor do futuro e marcará as possibilidades e impossibilidades de mantermos alguma coesão social. Uma aposta singela na potencialidade humana?

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