Para o mundo da literatura, 2014 tem sido considerado o “ano Cortázar”
por marcar os 100 anos de seu nascimento, 30 anos de sua morte e 50 anos da
publicação de “O jogo da amarelinha” livro que o retirou do anonimato e o
alçou a fama. Não por acaso. Argentino, mas vivendo por escolha na Paris dos anos
60, templo dos movimentos revolucionários da política e da cultura da época,
seu livro estampava o momento de ruptura que seu autor vivia em relação ao seu
passado e suas crenças. De forma lúdica e bem humorada, Júlio Cortázar
utiliza-se da ideia dos saltos do jogo da amarelinha e propõe duas opções de
leituras para seus 155 capítulos. Uma convencional, que vai do capítulo 1ao 56 e
aqui termina o romance, ou alternando-se os capítulos, e incluindo os
“prescindíveis”, em uma leitura que além de acrescer os restantes, segue uma
ordem sugerida pelo autor que aparentemente é arbitrária e aleatória. Confesso
que minha leitura deste livro, vista sob a lente atual, marca um antes e um
depois em minha vida. Se até ali eu podia me considerar uma leitora como outra
qualquer, a partir do contato com tamanha liberdade para romper com as
convenções e criar algo genial, fosse na trama da historia ou na apresentação
da forma inédita de ler, passei a desejar (íntima e secretamente) saber
escrever. Mas não para realizar um romance ou algo do gênero e sim para me
ajudar a pensar sobre os modos de vida das pessoas, seus valores, suas crenças,
que a mim pareciam tão arbitrários. Ainda não sabia o quanto eu mergulharia em
seus modos de sofrer e de amar e principalmente em seus medos. Estes 50 anos
que nos separam do lançamento deste livro podem ser vistos como a passagem para
um novo mundo, um mundo perturbador, quiçá um tempo de transição
para outro conjunto de valores. Convivemos simultaneamente com sociedades
dilaceradas por divisões étnicas, econômicas e religiosas e um mundo
interligado pelo uso de mídias sociais que permite um compartilhamento jamais
alcançado com a diversidade cultural e étnica do planeta. Há os que acreditam
que estamos vivendo uma nova ordem, e graças a esta dimensão social ampliada,
carecemos de regulamentações de práticas de política e de direito que escapem
daquelas elaboradas para defender apenas os interesses de cada povo. É esperado
que em universo
global haja a legitimação de uma moralidade global, assim como a soberania de
cada Estado possa sofrer constrangimentos caso se exima de seguir as leis e
normas pactuadas entre todos. Se o espírito de uma época só pode ser analisado tempos
depois, no momento em que se vive rupturas tão profundas, ao contrário, é fácil
detectar a expansão do medo, assim como certo recrudescimento de valores, maior
apego ao que se conhece e ao que se imagina ser um lugar de conforto naquilo
que se acredita. Júlio Cortázar teve que dar várias entrevistas para responder
à curiosidade sobre as razões, sentimentos e ideias que o levaram a “criar” um
livro tão inusitado. É quase certo que diante desta necessidade de responder,
ele teve que se esforçar por entender o que lhe passava. É provável que a cada
época em que fosse inquerido sobre a realização de seu livro, algo se acrescentasse
na historia deste percurso, fruto desta demanda humana eterna, que não cessa de
buscar trilhas seguras a serem seguidas, principalmente quando a paisagem é tão
desértica. E ninguém melhor do que o artista para representar a liberdade de
realizar nossos desejos.
Nenhum comentário:
Postar um comentário