quarta-feira, 28 de abril de 2010
O que as cores podem revelar
Lembro-me de ter sido invadida por certa euforia quando nas décadas de 80 e 90 houve um boom na produção de desenhos animados, quase todos by Disney, uma boa desculpa para levar meus filhos e rever as clássicas histórias infantis, coloridas e impecáveis. Lá estavam Cinderela, Branca de Neve, Bela Adormecida ou a Bela e a Fera, lindas, em sua saga de meninas a enfrentar um mundo injusto antes de poderem encontrar seus príncipes encantados. Eram animações cujas histórias privilegiavam uma lógica binária da condição humana, em que o mal habitaria algumas criaturas (em geral feias) que precisavam ser enfrentadas e descartadas para que as que fossem do bem (belas e puras) pudessem se impor. Saíamos refeitos diante da alentadora promessa de que era possível ser feliz para sempre.Talvez não tenhamos mudado muito nossos sonhos e ideais mas com certeza mudamos nossos modos de compartilhar nossas misérias e conflitos através de nossas criações artísticas. E quanto mais as obras de arte se aproximam da verdade de nossa condição humana através da ficção, mais elas podem simbolizá-la e representá-la permitindo que possamos ter um contato maior com estas verdades. Algumas animações contemporâneas são verdadeiras obras de arte, ao reproduzirem nossas fantasias e sonhos sem esconder o lado sombrio do nosso desamparo ou das nossas faltas. A infância como lugar em que cada um pode sofrer os piores abusos seja por abandono ou por aliciamento muitas vezes por desajustes dos pais continua sendo o espaço de excelência para a produção de nossas ficções. São muitas e diversificadas as animações que invadiram as telonas nas ultimas décadas, algumas re-encenando histórias como Alice no país das maravilhas, este famoso e imortal conto de Lewis Carrol, talvez porque se alimente do material onírico em que os sonhos humanos nadam. Outras embarcam em produções da nova literatura infanto-juvenil, caso de Onde moram os monstros, em que se misturam personagens reais e animados (os monstros) para nos contar como em nossa infância é imprescindível que haja este “lugar” especial e imaginário em que criamos personagens que são parte de nós mesmos, para abrigar nossos medos, nossos ódios, muitas vezes impossíveis de serem representados com palavras. Mas recentemente estreou na capital uma ousada e surpreendente animação australiana, Mary & Max- uma amizade diferente, dirigida muito mais ao público adulto do que ao infantil. É a historia de Mary Dinkle uma menina de oito anos, que usa óculos, é meio gordinha, vive solitária nos subúrbios de Melbourne,única filha de pais alienados (o pai é operário, nas horas vagas empana pássaros e a mãe se anestesia com bebidas alcoólicas, estirada em um sofá). Curiosa para saber de onde vêm os bebês escreve aleatoriamente a um estranho, Max Horovitz 44 anos,judeu, obeso, diagnosticado como portador de “Síndrome de Asperger” (uma nomenclatura médica para casos amenos de autismo) que vive no caos de Nova York. Também solitário, após se recuperar da “invasão” desta novidade em seu cotidiano obsessivamente “organizado” e asséptico, Max resolve responder a carta da amiga. Utilizando-se de marrom para o mundo de Mary e cinza no universo de Max o filme anuncia sua proposta de mostrar os tons amargos e tristes dos que se sentem marginais em um mundo que pede alegria, euforia e agilidade para acompanhar um cotidiano cada vez mais veloz e superdiversificado. Tanto Max quanto Mary transitam neste fio precário em que basta algum vento diferente ou mais dolorido para que eles se asilem em seus mundinhos solitários e fracassados. Por isso a amizade que o título do filme destaca é a possibilidade que ambos abrem ao assumirem ser cada um o interlocutor dos fantasmas do outro. Assim, ao sentirem-se menos ameaçados por suas angústias inomináveis, suas vidas podem enfim adquirir um sentido: Mary aposta no amor de Max através de seu interesse por qualquer coisa que ela diga, pense ou pergunte; Max ( com muita dificuldade) se deixa afetar pelas carinhosas palavras de Mary que jamais o condena, ao contrário, aceita-o e respeita sua singularidade e seus conselhos. E apesar dos tons sombrios de suas vidas, o diretor e responsável pela historia Adam Elliot, consegue a proeza de nos envolver sem acentuar o drama, ao contrário, utilizando-se de um fino humor. Vale a pena conferir.
quarta-feira, 21 de abril de 2010
Nas tramas de um crime
A mídia do dia 14 de abril último divulgou em pequena nota o suicídio do ex- estudante de jornalismo da ECA- USP Fábio Le Senechal Nanni, que em 2005 invadiu a Radio USP e matou com uma facada seu colega de curso e de moradia Rafael Azevedo Fortes Alves. Há cinco anos o assassinato de Rafael por seu amigo Fábio deixou todos os que conviviam com a dupla, atônitos. O que o teria levado a este ato insano? A revista Época, por ocasião do julgamento de Fabio três anos depois, tentou vasculhar estas razões, buscando encontrar peças que pudessem compor alguma justificativa. Na casa da família de Rafael a reportagem constatou que a tragédia de sua morte e o sofrimento pela sua perda tinha sido devastador. Filho de um economista, Rafael parece ter elegido o jornalismo não só como profissão, mas como possibilidade de engajamento pessoal, social e político que gostava de compartilhar fosse pelas músicas irreverentes e de protesto de Raul Seixas, pela boina em homenagem a Che Guevara ou pelas camisetas que ele mesmo pintava com poemas que escolhia. Bem humorado e acolhedor, parecia natural que “adotasse” Fabio, o amigo “rachador” mas complicado, que em um ímpeto de confiança, havia lhe confessado seu segredo mais humilhante: o de ter sido molestado sexualmente aos nove anos por um adulto desconhecido em um vestiário masculino. Nos últimos tempos da amizade, no entanto, Rafael passou a se queixar de seu assédio insistente e reivindicativo, cogitando “separar-se” definitivamente dele. Planejava viajar com a namorada para Cuba e lá ficar por algum tempo e na noite anterior à sua morte evitou dormir na casa que dividiam. Muitos hão de concordar que temos aqui uma trama digna de ser vasculhada pelas lentes do detetive Espinosa, personagem dos romances policiais (e psicológicos) do escritor e filósofo carioca Garcia-Roza, para quem um crime é sempre um emaranhado complexo de motivos, conscientes e inconscientes, e, portanto longe de ser um problema a ser resolvido, é um enigma a ser decifrado. O sucesso dos livros de suspense policial poderia ser atribuído ao fato de que os crimes de morte ou assassinatos sempre nos despertam sentimentos ambivalentes. Ao mesmo tempo em que nos é ameaçador e o repelimos nos é familiar e nos atrai. Sabemos ser possível odiarmos intensamente alguém ou mesmo desejar sua morte e embora não haja porque justificarmos um assassinato seja ele por vingança ou por loucura já que isto não elimina o fato de ele ser transgressivo, podemos sem dúvida tentar decifrar as tramas humanas que podem acabar em tragédia. O suicídio cometido por Fabio talvez seja um destes indícios não só da violência, mas da complexidade que nossas demandas de amor podem conter. Os poucos relatos dos familiares de Fabio mostram que ele não se recuperou da violência sexual sofrida em sua infância e sua opção pelo silêncio pode ter tomado uma amplitude insuportável. Vindo de uma família de classe média, Fabio foi reportagem do Estado de São Paulo por ter conquistado o 11º lugar em um dos mais concorridos cursos da USP. Buscava talvez uma compensação ou uma alternativa ao seu destino. O acolhimento de Rafael e seus cuidados devem ter sido especiais para ele. Mas, diferente do amigo que podia investir em diferentes amizades e amores, Fabio parecia precisar continuamente de “provas” de amor, quem sabe cada vez mais impossíveis e surpreendentes para Rafael. Talvez não possamos medir a dor de uma rejeição (ainda que imaginária), o insuportável da inveja ou o dilaceramento do sentimento de impotência diante de nossos anseios de amor. Só quando eles explodem em atos violentos como o assassinato e o suicídio.
domingo, 4 de abril de 2010
As dores de amores
O sofrimento humano é sempre vivido como trágico, como algo que ao mesmo tempo desejamos que não existisse mas sabemos lá no fundo que é inerente à condição humana. Ainda que esta dimensão trágica assuma valores diferentes na cultura dependendo de sua época histórica, ela sempre se refere ao que escapa, aquilo que excede ao ideal de sustentação da existência humana. Na atualidade o amor e a sexualidade tem sido convocados a responder por nossas vidas, a curar nossos males e a impedir nossos sofrimentos. Mas nada mais pantanoso do que o terreno amoroso e sexual, responsáveis por preencher o cotidiano de todos, assim como o das crônicas e notícias que a mídia divulga ininterruptamente. São as pequenas e grandes tragédias, ou seja, os impasses e conflitos de nosso desejo de amor e sexo e das dores que daí surge que fazem parte de nossas questões do dia a dia. Quem não acompanhou o julgamento do casal Nardoni, ambos condenados pela morte de Isabela, provavelmente vítima das tramas odiosas e muitas vezes enlouquecidas que podem assaltar uma convivência que no princípio pretendeu se ancorar na esperança de viver do e para o amor? Quem não ouviu as notícias assombrosas sobre os casos de pedofilia e assédio sexual de padres católicos a menores, provavelmente acobertados pela Igreja por serem frutos de uma aposta irreal no “ideal de castidade”? De um lado botamos muita fé no amor, na espera que ele possa nos trazer paz, preencher nosso vazio, produzir um sentido para as nossas vidas. Também imaginamos uma vida sexual nos moldes do “foram felizes para sempre” ou com o desejo de ambos sempre perpetuados ou com a “perfeita” ausência destes sons ruidosos. Ainda que hoje a sexualidade esteja mais exposta, falada e discutida ela é carregada de preconceitos, medos e tabus. É difícil para a maioria das pessoas falar sobre sua vida sexual e mesmo ponderar sua importância. Nossa sexualidade difere da dos animais por produzir um desejo que não se vincula somente a reprodução da espécie, o que lhe dá não só uma diversidade de formas de expressão e satisfação, mas possibilita a vigência de desejos incestuosos ou moralmente inaceitáveis. Quem sabe por estas e tantas, na dura realidade de nosso cotidiano continuamos a viver na pele a fragilidade de nossos relacionamentos que não cessam de buscar o calor da proteção, mas nunca nos deixam imunes ao medo de sermos rejeitados, abandonados, traídos , quando não odiados, violentados. A verdade é que continuamos seguindo a trilha do ideal de amor e sexo porque a cada encontro amoroso voltamos a alimentar nosso desejo, fantasia e sonhos. O amor e o desejo, para o bem e para o mal, estão sempre impondo a riqueza e a pluralidade de suas manifestações, ainda que algumas serão bem vividas e outras produzirão angústias e conflitos. São nossas dores de amores.
domingo, 21 de março de 2010
Comoção
A palavra comoção cai como uma luva para o sentimento que inundou a mídia e a todos os que assistiram a triste notícia sobre a morte do cartunista Glauco e seu filho Raoni. Ficamos abalados, chocados, revoltados, perturbados. Passamos a buscar avidamente novas informações que pudessem nos dar alguma explicação lógica ou ao menos alguns motivos para o ato tresloucado do rapaz que atirou para matar. É natural que diante de fatos violentos que causem tamanha estranheza, busquemos uns aos outros para qualquer acréscimo de argumentos que possam compor alguma história verossímil, de preferência aquela que nos coloque bem distante da possibilidade de viver algo semelhante. No mínimo porque entrar em contato com a precariedade de nossas vidas e a “proximidade” da morte sempre nos apavora. Por isso a notícia divulgada inicialmente pela mídia de que o assassino seria alguém próximo a família, amigo de velha data de Raoni, só deixou de nos aturdir quando foi completada por afirmações sobre suas ligações com drogas, sobre ele ser filho de pais separados, ter sido criado pelos avós, ter antecedentes criminais. Rapidamente tais informações forneceram alguns chavões explicativos para o seu “surto” de loucura, confirmados no vídeo em que o rapaz , com uma aparência própria dos que estão fora de si, confessa (vocifera) seu crime, embora ainda sem motivos que nos confortem. Também é verdade que a maioria de nós ficou surpresa ao saber ser Glauco o fundador da Igreja Céu de Maria, uma seita organizada em torno do Santo Daime, mais conhecido por ser um chá com uma tradição ritualista de cura ao maximizar as experiências de estimulação visual e as sensações de contato, seja consigo mesmo, ou com forças sobrenaturais e divinas. A partir dos anos 80 muitos artistas embarcaram em seitas seguidoras deste chá seguindo a promessa da resolução de males como a dependência química e a depressão. Estariam aqui mais alguns indícios que nos permitem dizer de forma simplória, que em seu papel de “xamã”, Glauco poderia ter acenado ao rapaz com uma possível cura de seu vício da cocaína ao aderir aos rituais da seita. Mas Glauco tinha um algo a mais para a nossa história, o fato de ser famoso o que acrescenta à sua morte implicações diferentes para nós, ao funcionar como o despertar de um sonho, aquele em que imaginamos estas pessoas habitando o nirvana que almejamos, e que a morte e a loucura nos jogam na dura realidade. Como aprumar tais idéias sem caírmos em análises maniqueístas, como por exemplo, atribuir estes “desvios” simplesmente ao uso de drogas, este mal de nossos dias que assombra a todos os que têm filhos adolescentes? Talvez esta história conturbada da vida privada de pessoas que vem forçosamente a público possa ter outro papel, o de nos possibilitar pensar em um mais-além do óbvio. A verdade é que o uso de drogas é um destes temas complexos cujas significações assumem dimensões que não podem ser reduzidas ao patológico ou ao crime. Em uma sociedade em que ser feliz é uma premissa imperativa, os diferentes tipos de drogas ( legais, ilegais, medicinais, etc) funcionam como atraentes remédios diante das dificuldades que todas as vidas tem que enfrentar. Não tem sido facil convivermos com as incertezas sobre sermos bons ou vilões, competentes ou impotentes, amados ou indesejados, e nada como podermos afastar ou abafar nossas incertezas com algum tipo de anestesia mental.Ninguém poderia negar o quanto a medicina contemporânea nos acena com inúmeros medicamentos que prometem o acesso ao bem estar, qualquer coisa que impeça nossas angústias ou nossas insônias. Para os jovens em especial, por se encontrarem em um momento duro, de reposicionamentos, de direções a seguir, o fato de buscarem este tipo de escape quase sempre significa uma tentativa de prescindir das dores que as relações humanas impõem, temperados com as cores muitas vezes cinzas de suas histórias pessoais. O paradoxo é que nossa sociedade de consumo alimenta a todos com a promessa de que algum objeto de sua prateleira possa nos satisfazer, ou seja, de que podemos sim prescindir destes males de amor. E às vezes ao inferno do mundo das drogas não existe na vida de alguns, nenhuma outra opção razoável, de acolhimento, de novas possibilidades, ou senão existe sim um outro inferno, aquele em que ele é capturado pelos seus dramas de amor e de sexo. Aí é possível que só reste este espaço do “nada mais importa” tanto para os tiros que matam deliberadamente, quanto pela falta de razões que os sustentem. Ainda assim, no mesmo intuito de complexizar, é bom que lembremos que o vício não é uma escolha e sim um sintoma que clama por cuidados seja de pais, terapeutas, amigos, da sociedade enfim.
domingo, 14 de março de 2010
Luzes e câmeras sobre nós
Meryl Streep é uma atriz conhecida pela maioria do público brasileiro, protagonista de vários filmes de sucesso (Kramer vs Kramer, As pontes de Madison, Mamma mia, O diabo veste Prada) e indicada 12 vezes ao Oscar, inclusive este ano (melhor atriz) por sua atuação em Julie & Julia, filme que biografou a história de Julia Child, reverenciada nos USA por ter sido a primeira a lançar um livro de culinária francesa dirigida ao público americano. Discreta em relação a sua vida íntima, Meryl Streep é muito valorizada e disputada como atriz e conhecida por levar a sério todos os papéis que representa ao ponto de aprender a dançar, a cantar e até a tocar violino quando seus personagens exigem. Quem acompanha sua carreira através de sua filmografia sabe quão difícil é encontrar os adjetivos que as suas performances merecem, a precisão aguda dos sentimentos que evoca em cada uma de suas atuações, o total controle da técnica dramática e a capacidade de imersão completa em seus personagens, como por exemplo, a habilidade em imitar, quase como se fosse uma nativa, diferentes sotaques. Não há como negar-lhe uma incrível versatilidade que faz com que ela transite da comédia ao drama brilhando nos dois gêneros. Mas talvez sua característica mais marcante, que lhe concede um passaporte para a empatia com seu público seja a honestidade e o respeito com que ela trata seus personagens. É isto que faz com que nós, meras espectadoras, nos identifiquemos e possamos nos sentir irmanadas na alegria e no sofrimento, na vergonha, na dúvida, no desejo, no ódio. Aos sessenta anos, ela acaba de estrear uma comédia romântica (Simplesmente Complicado) em que atua ao lado de outros sessentões conhecidos, Alec Baldwin e Steve Martin, fazendo o papel de uma mulher que, estando descasada há 10 anos e mãe de três filhos já crescidos, ao viajar para Nova York para participar das festividades da formatura do filho mais novo, tem um affair com seu ex-marido. Um filme despretensioso, dirigido por uma mulher (Nancy Meyers), que acaba por oferecer a nós mulheres que nascemos durante a década de cinquenta, uma oportunidade de nos confrontarmos com os dilemas que muitas de nós enfrentamos em nosso cotidiano nos dias atuais. Estão ali algumas questões como o relacionamento entre mães e pais separados e seus filhos, o direito e o medo de recomeçar a vida, as mazelas do convívio entre ex-mulheres, ex- maridos e suas e seus atuais, a rodinha das amigas íntimas que se transformam em ouvidos importantes para os pesares, os conflitos em torno do desejo de namorar ou de conhecer homens da mesma faixa etária, as idas e vindas com a questão da sexualidade, as confusões amorosas, a vergonha do corpo que envelhece. Meryl Streep pode ser considerada uma mulher ousada, mas também é uma batalhadora, que não só persegue seus ideais como investe bravamente seu tempo na confecção de um trabalho sempre bem feito, o que provavelmente exige de si mesma, uma eterna perseguição ao lema de tentar ser sempre melhor do que se foi. Este texto não pretende homenagear somente esta atriz, mas a todas as mulheres que, apesar de suas misérias e grandezas, seus fracassos e sucessos perceberam que o “que se é” e o “que se pretende ser” é hoje uma prerrogativa de cada um. Parabéns a todas nós, mulheres guerreiras!
quarta-feira, 3 de março de 2010
A fidelidade sexual em foco
Causou frisson a notícia veiculada pela mídia nesta semana sobre o resultado de uma pesquisa realizada por um especialista em psicologia da evolução em Londres. Segundo ele, homens inteligentes estariam mais propensos a valorizar a exclusividade sexual do que os menos inteligentes. Sem medo de balançar a tão acalentada e propagada premissa machista sobre uma poligamia “natural” dos homens, Satoshi Kanazawa da London School of Economics teria afirmado ainda que o comportamento "fiel" do homem mais inteligente seria um sinal da evolução da espécie. O noticiário de interatividade da Eldorado Rádio Blog aproveitou o teor polêmico do tema e levou o debate ao ar, divulgando as diferentes e inesperadas reações de seu público e mostrando que o tema merece espaço e reflexão. Cabem, entretanto algumas ressalvas importantes, antes que possamos analisar a fidelidade sexual, produto de um comportamento que não é natural e sim uma escolha moral e que admite normas e tonalidades diferentes conforme a época em que vivemos. Podemos partir de nossa crença moderna no amor romântico, crença esta que não gostamos de questionar ou duvidar e que instituiu alguns dogmas que ainda compartilhamos. O amor romântico surgiu na Modernidade para dar sentido e direções à nossa então incipiente liberdade sexual, que passava a admitir a escolha de parceiros baseada em critérios individuais de atração dos corpos. Passamos a chamá-lo de amor verdadeiro, e incluir em sua receita de felicidade, a fidelidade sexual dos parceiros. Tal exclusividade funcionaria como prova inquestionável da existência deste amor, assim como a infidelidade atestaria que o amor acabou ou não teria existido. Mas o amor provou ser um sentimento volátil, às vezes incontrolável, um torpor mental que tanto podia encher-nos de alegria quanto de desespero. Por ser mutável, podia passar por fases de expansão e contração, de aproximação e afastamento, de apaixonamento e de desapego. O histórico do amor romântico demonstra que ele nos coloca em uma situação paradoxal, já que ao amarmos ficamos sujeitos às vicissitudes da contingência, a mercê do outro e, portanto dos desenganos, decepções e tormentas. Como não há garantias da permanência destes sentimentos, os caminhos para organizarmos nossa vida amorosa nem sempre são acessíveis e lógicos, o que alimenta ainda mais (a homens e mulheres) nossa expectativa de fidelidade de nosso parceiro. Porém se a fidelidade é um anseio humano, sua escolha implica mais do que nunca em uma renúncia à liberdade sexual ilimitada, anunciada e reiterada por cada parceiro. Ao afirmar que a escolha pela fidelidade implicaria em um comportamento mais evoluído, o pesquisador provavelmente se referiu ao fato de que para sermos civilizados, ou seja, para vivermos em sociedade há um preço a ser pago pelo controle sobre nossos impulsos sexuais e agressivos. A fidelidade como escolha faz parte da ética individual de cada um, e nos remete a aqueles critérios que elegemos para administrarmos nossas condutas, e principalmente nossa convivência com os outros. Em geral nossa vida sexual e amorosa também “sofre” uma evolução durante nossas vidas e é assim que podemos nos confrontar com nossas escolhas, nossas reações, nossos sentimentos (e quando conseguimos, mudá-los). Mas a verdade é que esta complexa composição entre amor, sexo e fidelidade demanda o tempo todo um confronto com as regras que construímos e que logo ali podem ser questionadas ou desconstruídas. Neste sentido o resultado da pesquisa apenas confirma algo que intuímos quando nos apropriamos de nossos destinos amorosos, o de que cabe a cada par criar e recriar seus critérios de convivência sexual e seus pactos de fidelidade, o que, com certeza requer muito investimento e quem sabe, de quebra,uma evolução pessoal
segunda-feira, 1 de março de 2010
Liberdade & Sexualidade & Visibilidade
Uma reportagem de uma edição recente da Revista Época chamou a atenção para o fato de, com diferentes motivos, mulheres comuns estarem tirando suas roupas e mostrando sua nudez. Algumas para presentear maridos ou namorados com ensaios de fotos sensuais feitas em estúdios de fotografia, outras para estampar calendários, que vendidos, contribuiriam para angariar fundos para alguma causa social. Ou ainda aquelas (mães de famílias americanas) que, sem motivos aparentes, teriam respondido ao apelo de um “site” para serem fotografadas nuas em alguma atividade banal, como jogando poker. Teria o mundo se transformado em uma grande vitrine e somente quem conseguir certa visibilidade (seja lá a qual preço) pode se sentir parte dele? A liberdade sexual alcançada nas últimas décadas pelas mulheres estaria incentivando-as a “assumirem” sua sensualidade sem constrangimentos? Seria mais fácil hoje para qualquer mulher viver sua fantasia (antes inadmíssivel) de ser parte integrante do imaginário erótico masculino? Por que diante de tanta liberdade para escolhermos estilos de vida sexual e modos inusitados de gerenciar nossos corpos, a exibição destes nos parece tão sedutora? Refletir sobre esta composição entre liberdade & sexualidade & visibilidade requer uma pequena e não tão simples revisão do percurso da cultura, este complexo patrimônio simbólico produzido por nós mesmos, e o fato de as mudanças em alguns valores, que antes demoravam mais de uma geração, hoje nos atropelarem com novas e inusitadas questões. Dentre estas desconstruções radicais de antigas crenças e modos de existência,estão tanto a maneira de viver a nossa sexualidade (homens e mulheres) incluindo aí os contornos e limites de nosso corpo erótico (principalmente para as mulheres), quanto a midiatização de nosso cotidiano, lembrando o quanto a publicidade se apropriou de imagens eróticas femininas para agregar valor às mercadorias. Freud foi um dos teóricos mais sensíveis ao papel que a sexualidade humana teria na produção de cultura e, percebendo seu caráter disruptivo, apontou a importância de sua regulação para um gerenciamento da convivência entre nós. Para cada época existem comportamentos que são incentivados e aprovados e outros que são desestimulados e condenados. Nosso apetite sexual já foi encarado como uma alquimia de feiticeiras e bruxas prontas a exercer as tentações que culminariam com a perdição da alma humana, mas estão longe de nós os dias em que o sexo e a sexualidade humana eram assunto tabu. Eles hoje fazem parte integrante de uma ciencia que se preocupa em nos informar sobre como bem vivê-los. Mas é justamente por falhar repetidamente em se conformar as normas e restrições da cultura que a regulam que a sexualidade humana manteve-se durante grande parte de nossa história como um tema a ser pouco veiculado. Isto foi particularmente mais verdadeiro em relação a sexualidade feminina, abafada sob diferentes justificativas, fosse pela ideologia judaico-cristã que nos guiou durante séculos e exaltava um modelo de mulher assexuada, fosse porque coube aos homens durante um longo período, gerenciar a distribuição de prazer (e de poder) da cultura, tomando para si a parte majoritária. Com isso, as mulheres viveram muito tempo entre dois modelos, o da santa (todas as “mães”puras) e o da prostituta ( todas as mulheres que exalassem sensualidade), ambos gravitando em torno de uma lógica masculina de compreensão do feminino, fantasia que ainda prende a homens e mulheres. O recato (cobrir as partes do corpo que pudessem lembrar qualquer sinal de êxtase) foi por muito tempo uma norma imperativa,que visava acalmar as pulsões eróticas das mulheres, assim como os temores masculinos de uma sexualidade feminina ilimitada. Paradoxalmente este recato como regra abriu a possibilidade para que cada pedaço do corpo feminino pudesse se transformar em fetiche para os olhos desejosos dos homens (vide o longevo sucesso das revistas com poses sensuais ou com nudez parcial, voltadas para o consumo principalmente masculino). Hoje não só a mulher foi sensualizada e está eroticamente emancipada, como a corporeidade de ambos os sexos ganhou um vulto nunca antes alcançado em termos de visibilidade e espaço na vida social. Mas se é verdade que um certo excesso do “erótico” pode funcionar como uma forma de se opor ao longo período de censura e repressão à sexualidade feminina, também é verdade que a mídia contemporânea incentiva a cultura atual à exaltação do corpo e da imagem. Esta passagem do recato à visibilidade não é gratuita. Se hoje dependemos muito mais do olhar de reconhecimento dos outros sobre nós para afirmar e reafirmar nossa existência e nosso valor, a mídia depende do interesse do público e acena o tempo todo com a possibilidade de alguns minutos de fama para qualquer cidadão, o que alimenta a espetacularização da vida social. Ficamos diante desta tênue fronteira que descortina ao menos dois fatos da atualidade: 1-cabe à cultura conciliar uma civilização mais erótica e ao mesmo tempo mais livre e mais justa sem que isto se confunda com fundamentos moralistas de comportamento sexual; 2-cabe a cada um o gerenciamento de sua exposição e a difícil decisão de renunciar aos sedutores minutos de fama, cada vez mais acessíveis, e muitas vezes alimentando nossa sede de amor. Difícil tarefa.
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