Semanas atrás, em conversa com brasileiros que residem nos USA, falávamos sobre a força da "tradição" que o feriado do Thanksgiving mantém entre os americanos. Uma das pessoas comparou o clima desta data - em que as famílias americanas se reúnem em torno do famoso "turkey"- ao nosso Natal. Comemorado toda 4ª quinta feira do mês de novembro, o dia de Ação de Graças rememora a refeição coletiva de agradecimento pela fartura da colheita conquistada pelos peregrinos vindos da Inglaterra, graças aos ensinamentos de alguns índios nativos sobre as técnicas de plantio. O período anterior havia sido de penúria diante do frio e da fome. De certa forma nos familiarizamos com esta celebração e pudemos comprovar seu valor em inúmeros filmes (made in USA) que mostram jovens estudantes e adultos cruzando estados para se reunirem com seus familiares. Muitos destes filmes contam historias de afirmação de vínculos de pertencimento, alguns do reasseguramento dos afetos de amor, mas não são poucos os que descortinam os desencontros tanto pelo via do drama quanto da comédia. Tal e qual as histórias sobre a noite de Natal em torno das expectativas das reuniões familiares, não importa o quão difícil, trabalhoso e tenso seja, a tradição funciona como um polo agregador e inevitável e todos se sentem melhor se puderem "cumprir" com este protocolo. Por não compartilhar de fato do significado do Thanksgiving, uma de minhas interlocutoras, que ali reside há mais de uma década, trazia seu olhar "estrangeiro" sobre esta festa. Insistentemente convidada a participar e incitada a escolher um entre os “anfitriões”, percebia ser difícil para a grande maioria, suportar o fardo da solidão ou da exclusão dos que não possuem famílias e não podem desfrutar do calor da data. Aos poucos foi se acostumando a planejar seu feriado, escolhendo as “famílias” principalmente pelo critério de seu acolhimento e flexibilidade, já que em seu currículo constavam vários jantares que expunham o paradoxo da reunião. Embora houvesse um movimento geral em torno de compra de passagens e presentes, definição de cardápios e receitas de peru, nada garantia que o evento fosse agradável. Na verdade, a produção de intimidade por vezes “involuntária” da família parecia induzir uma espécie de visita ao seu "acervo de memoria afetiva" despertando os pequenos dramas infantis de cada um. Em geral as festas de Natal também impõem a todos o cumprimento de seus rituais - juntar o maior número possível de familiares, decidir a casa, o cardápio, fazer o amigo secreto ou presentear aos que somos gratos - mas nada impede que possam ser tensas, e os motivos podem ser os mais variados. Talvez um denominador comum seja o fato de que nossos mais pungentes dramas são os vividos em nossa infância, no seio familiar, dramas construídos pela força dos amores, das preferencias, do carinho, mas também dos ciúmes, das disputas, das rivalidades e das violências. Muitas famílias, ao longo de suas histórias, conseguem minimizar os efeitos às vezes mortíferos, às vezes agressivos que permeiam suas relações e podem manter um funcionamento mais cool, em que o humor e o amor sobrepujam as diferenças e as tensões. Outras perpetuam este ranço e suas reuniões são palco de trocas ferinas, mágoas e ressentimentos. Porque continuam se reunindo? Saber-se parte de uma família, ter uma origem, uma "organização" a qual se pertence pode ser mais importante do que sentir-se excluído em uma data em que se imagina que TODOS estão "felizes" comemorando com os seus. Pode ser que a dor e o sofrimento deste desamparo sejam mais insuportáveis do que o convívio familiar, mesmo que seja para brigar, beber, falar o que não se deve, ouvir o que não se quer.
quinta-feira, 15 de dezembro de 2011
quinta-feira, 8 de dezembro de 2011
Conto de fadas moderno
A frase saiu pronta, rápida, mas eu nem havia pensado sobre ela. Provavelmente fazia parte destes momentos em que fazemos alguma associação, mas seu sentido nos escapa. Diante da necessidade de eleger um tema a ser abordado em nossa seção de debates do próximo numero da Revista Percurso ( http://www.revistapercurso.com.br/) , pedi às minhas colegas que assistissem ao filme “O garoto da bicicleta” (ainda em cartaz na capital) e deixassem-se afetar por sua trama. Depois voltaríamos a conversar. Saí dali e fiquei a tentar buscar o sentido daquele convite. Porque aquele filme me parecia paradigmático a ponto de suscitar questões importantes? Assistira-o há dois dias antes, não só por ele ter conquistado o Grande Prêmio do Júri do Festival de Cannes/2011 ou fazer parte da 35ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, mas por ter visto seu trailer algumas vezes e me encantado pelas cenas do menino “voando” em sua bicicleta no verão de alguma pequena cidade do interior. Cenas de crianças que circulam sozinhas de bicicleta pela cidade não são mais usuais em nosso panorama paulistano nem mesmo em cidades do interior como Ribeirão Preto ou Campinas, mas fazem parte de meu repertorio afetivo infantil. Com pouco mais de oito anos era meu veículo de transporte para fazer pequenas compras ou ir às aulas de piano, a algumas quadras de minha casa. Nunca me esquecerei da sensação de liberdade e até de uma certa autonomia protegida, que me permitia transitar as vezes pelas calçadas outras pelas ruas asfaltadas da minha querida Morada do Sol. De fato a bicicleta tem um significado importante na historia de Cyril. Ela funciona ao mesmo tempo como uma possibilidade dele transitar entre seu passado para resgatar as boas coisas e fechar suas feridas, e ajuda-o a buscar um lugar para si no futuro. Aos 11 anos, deixado por seu pai em um orfanato com a promessa de que seria apenas por um mês, Ciryl se inquieta com a falta de noticias deste pai (que desaparece quase sem deixar rastros), e passa a criar estratégias de fuga, convicto de que o encontrará, assim como a sua bicicleta. Em uma destas tentativas, consegue voltar ao seu apartamento, mas ele está vazio, quase sem vestígios de sua antiga vida, inclusive sem sua amada bicicleta. Ao tentar se desvencilhar da captura dos agentes de seu orfanato, esbarra em Samantha, uma cabelereira da cidade, e a abraça forte e desesperadamente como a impedir que o levem. Aos berros ele deixa claro sua crença de que o sumiço do pai é improvável e clama por uma história que o convença. Seu pedido de socorro desperta a compaixão e a curiosidade desta moça que acaba encontrando a tal bicicleta à venda e decide dá-la de presente a Cyril no orfanato. Mas ele ainda não pode crer que o pai tenha colocado a venda algo tão valioso sem consulta-lo. Faz mais sentido imaginar que isso teria sido obra de algum ladrão de bicicletas. O orfanato abre às famílias da cidade a chance de se oferecerem como guardiãs dos órfãos para os finais de semana. Samantha, a pedido do próprio Cyril, acolhe-o e o ajuda na busca do pai perdido. Deixando de lado o restante da trama (para não eliminar as surpresas de quem ainda não viu), em entrevistas a imprensa, os irmãos Dardene, diretores do filme, proclamaram ser este um conto sobre o amor cujas referencias seriam os contos de fada, no estilo de um conto de fadas moderno. Curiosamente, se os contos de fadas costumam assegurar um final feliz, eles também são a maneira que nós adultos inventamos para revelar aos nossos filhos as dificuldades das relações familiares, em que pais e filhos podem odiar aqueles que mais amam, em que invariavelmente há desencontros amorosos, e perdas de ilusões de perfeição. Nem descrença absoluta, nem ingenuidade ou julgamento moral na composição dos personagens, somos convidados a “escutar” os motivos e justificativas de atos humanos. Até mesmo o mito da infância feliz está sendo questionado, aquele em que um casal parental amoroso e presente seriam garantia para um filho se tornar um adulto com autoestima permanente, apto a enfrentar as dificuldades da vida. Cyril é um personagem contemporâneo, meio insuficiente, meio atrapalhado, às vezes agressivo, outras corajoso, aflito e terno que busca valentemente um lugar no mundo para si. E os diretores parecem apostar em nossa capacidade de nos aproximarmos dos personagens, não para repeli-los por aquilo que nos incomoda neles, mas para reconhecer neles possibilidades nossas, e quem sabe nos solidarizarmos com suas dores.
Para conferir:
O Garoto da bicicleta (Le Gamin au Vélo). Bélgica, 2011.
Direção: Jean Pierre e Luc Dardenne.
Com Cécile de France, Thomas Doret, Jérémie Renier.
quinta-feira, 1 de dezembro de 2011
Benvindos
O Brasil poderia ser comparado a um jovem e inquieto adulto que, na falta de boas referências que pudessem dar-lhe um contorno mais definido de sua identidade, estaria sempre em busca de confirmação sobre seus talentos e falhas, suas possibilidades e misérias. Quase todas as celebridades estrangeiras que aqui aportam são assediadas pela mídia para deixarem suas impressões, seja sobre as características mais marcantes de nosso povo e suas proezas, pelos contrastes sociais fartamente exibidos pelas nossas cidades, pelo funcionamento “caseiro” de nossa politica ou pela grandeza de nossos recursos naturais. No cômputo geral conseguimos impactar a maioria dos que nos visitam e não é raro ouvirmos alguns elogios a alguns destes itens. Claro que não podemos deixar de registrar as regras de boas maneiras exigidas para todo visitante. Que não se atrevam a melindrar seus anfitriões apontando-lhe falhas às vezes escancaradas. É de bom tom evitar constrangimentos e enaltecer nossas qualidades ou agradecer nossas gentilezas. Por isso chamou a atenção os comentários feitos por Alain de Botton em sua recente visita ao Brasil. Suíço de nascimento, mas na Inglaterra desde os 12 anos, ele é um dos filósofos mais pops da atualidade. Simpático, não se esquiva de quaisquer questionamentos que lhe sejam dirigidos ou que lhe imponham algum tipo de crítica ou avaliação. Convicto de que os saberes das humanidades precisam se aproximar da vida cotidiana de todos, versa com segurança sobre temas como o amor, a religião, o trabalho, a educação, a literatura, a arquitetura, a vida em sociedade e o significado da existência humana. Com respostas sempre à ponta da língua, rebate as críticas feitas ao estilo “autoajuda” de seus livros, lembrando que tal estilo de literatura sempre fez sucesso em tempos mais remotos, quando filósofos e pensadores em geral escreviam verdadeiros tratados para ajudar os indivíduos a se situarem melhor em suas vidas. Levando sua convicção às ultimas consequências em 2009 fundou em Londres a “The School of Life”, uma universidade voltada a todos os que desejam estudar “como viver” e que oferece possibilidade de se discutir temas como morte, casamento, escolha de profissão, ambição, criação de filhos. Temas que estariam hoje relegados a alguns gurus (segundo ele), mas que precisariam ser considerados com rigor e seriedade por sua importância na vida de todos. Por isso em sua escola é possível se inscrever em cursos como política, trabalho, família, amor, além de conversar com um terapeuta, aprender a fazer jardinagem, etc. Um claro desafio à educação vigente que estaria longe de valorizar as respostas para os grandes dilemas da vida. Durante o curto período em que aqui esteve - uma semana – com a finalidade de participar de conferências e lançamento de seu último livro, a cada cidade que visitava (São Paulo, Porto Alegre e Rio de Janeiro) o filósofo tuitava comentários (nem sempre lisonjeiros) de forma espontânea. Em uma de suas últimas entrevistas confessou estar com a impressão de que estava aqui há séculos, tamanho era o país e sua diversidade. A Inglaterra lhe parecia não só pequena como pacata. Sensível, detectou as diferenças entre as culturas de cada uma das cidades visitadas, e embora tivesse comparado Porto Alegre ao Texas, São Paulo a Nova York e o Rio de Janeiro a Los Angeles, não deixou de sublinhar as diferenças entre Brasil e EUA, principalmente na maneira como a religião aqui funcionaria de forma mais acolhedora e menos fundamentalista. Deixando-se afetar sem pré-conceitos, Alain de Botton pareceu aglutinar a inquietude de sua geração (tem 42 anos), mas mais que isso, despiu-se de qualquer arrogância intelectual sem cair na banalidade e sem perder o interesse e a curiosidade pelas vidas humanas em geral. De forma generosa, emprestou sua vitalidade e conhecimento em todas as pontuações que nos fez. Só nos resta dar-lhe as boas vindas!
sábado, 26 de novembro de 2011
A invenção da vida
Betina ouviu as batidas na porta de seu quarto e suspirou contrariada. Tentou responder “não” à sua mãe de forma o mais gentil possível. Na verdade não desejava sair de sua cama. Queria ficar ali, deitada, pensando, rodando o filme de sua vida sem que seu corpo se mexesse. Era uma técnica que ela havia desenvolvido e que lhe dava uma extrema sensação de conforto. Gostava de se imaginar em uma viagem como se fosse apenas um ponto, sem matéria, ao mesmo tempo em que era tudo: as ideias ficavam claras, os sentimentos eram aparados e o peso das dúvidas e do medo afastava-se. Mas agora teria que “retornar”, abrir a porta e enfrentar sua mãe. Ela não deixava barato. Já havia sentido muita raiva por ela ser tão “presente”, por ficar tão atenta. Depois de tantas vezes em que as mães foram tema de discussões entre as amigas, foi situando a sua de forma diferente. No fundo era bom que ela se importasse. A mãe de Aninha, por exemplo, nunca telefonava para saber seu paradeiro, e isso já tinha sido motivo de inveja de muitas. Mas não mais dela. Até o fato de serem apenas as duas, ela e a mãe, já estava mais acomodado em sua bagagem de vida. Sua inquietação do momento era o fato de seu aniversário de 18 anos estar próximo, já na semana seguinte. Sentia necessidade de pensar sobre esta passagem, ajustar melhor seus planos. Estava no final do primeiro ano da faculdade e empolgada com o curso que havia escolhido - à revelia de seu pai que apostara em uma carreira mais “consistente”. Quase prestara Arquitetura só para deixa-lo mais contente. No fundo sentia uma pontinha de orgulho por não ter desistido de ser uma designer gráfica. O desenho sempre tivera um significado importante em sua vida e desde os oito anos, acostumara a retratar situações familiares e de seu cotidiano em pequenas folhas brancas. Em geral os adultos ficavam muito entusiasmados com sua capacidade de apreender certas nuances das pessoas e das situações naquelas “mal traçadas linhas”. Não tinha sido nada fácil convencer os pais a dar-lhe esta chance, e na época isso tinha sido muito sofrido. É difícil e injusto o confronto entre o que os filhos querem para si e o que os pais querem que eles sejam e para ela em especial havia sido tumultuado escolher algo que desagradava aos dois. Rolou muita conversa, muita saliva e tentativas de persuasão de um lado e de outro. Filha única de pais separados, exigentes, intelectualizados, que colocavam nela um caminhão de expectativas. Ufa! Carga pesada para uma adolescente que sonhara desde sempre em ser artista, esta palavra tão solta, sem grandes definições prévias, sem vínculo empregatício, sem lugar de destaque no mercado das profissões promissoras. Começara o ano letivo com ganas de absorver ao máximo as técnicas e ferramentas oferecidas para aprimorar seu talento. Queria (precisava) descobrir algum nicho diferenciado e era preciso convencer seus pais sobre a importância de adquirir programas digitais de ultima geração. Suas ideias fervilhavam e era deste tempo mágico que as batidas da porta do quarto destoavam. Uma coisa era imaginar sua nova empresa de produtos descartáveis com designs criativos dirigidos às grandes redes de hotéis e restaurantes. A outra, bem diferente, era começar a falar disso com sua mãe (ou pior, com seu pai). Da fantasia à realidade havia uma distancia desanimadora. Abriu a porta.
sábado, 19 de novembro de 2011
Eu como você
Em geral os filmes de Almodóvar dispensam apresentações. São filmes que trazem a marca e o estilo de seu “autor”, este espanhol que conseguiu abordar a temática da sexualidade latina (e humana, claro) escancarando o preconceito, mas principalmente o que fica escondido nas bordas, na periferia ou no avançado das noites, quando a grande maioria já dorme em suas camas e casas protegidos. Sua arte não cabe nos bons nem nos maus valores: causa espanto, ambiguidade e surpreende por tocar-nos seja pela com-paixão ou pela perturbação (caso de seu ultimo filme “A pele que habito”). Sem o colorido e o excesso que marcam seus filmes anteriores, neste, Almodóvar parece querer “esterilizar” e até banalizar os impactos da sexualidade ao trazer ao grande público um tema perseguido desde sempre pela humanidade, o controle da vida e da morte ou, se quisermos, o controle (silencio) das dores do viver. Tal como um Dr. Frankenstein pós-moderno, Antonio Banderas interpreta o cirurgião plástico Ledgard, que utiliza como cobaia (de forma inescrupulosa), uma mulher que mantém cativa em sua mansão/ clinica, e na qual irá implantar um novo tipo de pele transgênica (feita com DNA suíno) que, embora mantenha a sensibilidade ao toque, deixa-a resistente ao fogo, a picadas de inseto e ,é claro, a dor. A frieza/indiferença deste cientista ousado esconde, no entanto, não só sua busca obsessiva pela esposa perdida (e reconstruída nesta mulher-objeto), como sua vingança pela morte da filha, pela qual tentará fazer “justiça” com suas próprias “mãos”. Na medida em que o filme avança e regressa no tempo para situar o espectador, a trama se abre aos personagens almodovarianos, agora sim se apresentando com suas historias dramáticas, seus segredos, infortúnios, perdas, enfim, tudo o que pode tentar justificar o uso e o abuso de uns contra os outros. Há com certeza uma espécie de crítica aos avanços inimagináveis da ciência, mas há mais que isso. Como toda arte que exerce seu papel de apontar para valores futuros, transgredindo os vigentes, Almodóvar escancara o homem por trás da ciência e seu anseio em se apossar do próprio corpo através do controle de seus excessos, suas vontades, seus prazeres e dores, em especial, as dores psíquicas. Corpos que se transformam em meros objetos, que podem adquirir novas formas e sexo ou descartar o que não serve. O perturbador da trama é o que ela revela sobre os avessos e sombras do espírito humano - a violência do desprezo, do constrangimento e da humilhação própria das relações de domínio e submetimento. É a constatação de que estamos sujeitos a construir, ainda que de forma defensiva, um eu todo poderoso e onipotente, que facilmente nos conduz ao abuso de poder, ao canibalismo utilitário e instrumental, subvertendo o que temos de mais caro em nossa escalada humana - a possibilidade de dimensionar o valor do outro/ próximo como um parceiro em nossa empreitada do viver. Se é pelas parcerias que podemos enfrentar o medo e os percalços de nosso encontro com a sexualidade e a morte, tal percepção não está dada e nem sempre é possível; precisa ser buscada, desejada, fazer-se necessária. Por isso o filme incomoda, e ficamos sem saber em que arquivo guarda-lo: teremos que inventar ou nos indignar.
Para conferir: A Pele Que Habito (La Piel que Habito) – Espanha 2011Direção: Pedro Almodóvar
Elenco: Antonio Banderas, Elena Anaya, Marisa Paredes
segunda-feira, 14 de novembro de 2011
O que a gente pode fazer
As dores em seu corpo funcionavam como lembretes ao não lhe deixar esquecer que a noite tinha sido um calvário. Acordara pelo menos duas vezes na madrugada, assaltado por sua angústia e por uma sensação de medo. Talvez não houvesse nada pior do que estes “sentimentos agudos” que ficam a brigar com o torpor do sono até que finalmente vencem a batalha e inundam todo o corpo. Ponto para a consciência crítica a lhe importunar sem descanso. O quarto ainda estava escuro, mas o barulho da manhã já invadia o ambiente. Tentou evitar olhar para os enormes números digitais vermelhos do relógio, mas eles haviam sido colocados ali no alto justamente para facilitar a organização de sua rotina diária. Medo. Medo de ter que pensar, de ter que se lembrar de tudo. De ter que resolver, decidir, agir. Nestas horas parecia fácil visualizar que à proporção da evolução,também pipocavam formas de se safar do peso da administração da própria vida. Na medida em que o orçamento ganhava algum volume era possível nomear agentes que passavam a funcionar como co-autores desta empreitada. Tinha se beneficiado desta prerrogativa sem nenhuma culpa. Seu secretário “faz tudo” e seu motorista – cuidadosamente selecionados – foram assumindo parte a parte de suas obrigações a ponto de se confundirem com ele mesmo. Os três juntos eram imbatíveis e podiam jogar horas sem deixar a bola cair, tamanha a sincronia. E quando se atinge um estágio em que é possível se ter a ilusão do controle (quase) absoluto é muito fácil se esquecer do imponderável. Do inesperado. Das surpresas. Tem-se a impressão de que a vida vai (mesmo) andar no trilho da tranquilidade, para sempre. Sentiu a vergonha inundando seu corpo, ultrapassando e se misturando por alguns segundos com o tormento do medo – um medo que não ousava dizer o seu nome, uma espécie de covardia autocomplacente. Será que havia estudos sobre estas diferenças, anunciadas pelo corpo, para as sensações de medo/ angustia, vergonha/humilhação, nojo/horror? Cada grupo parecia movimentar órgãos e vísceras específicos, como se fossem tonalidades diferentes de desconfortos. Vergonha de que? Não sabia ao certo, mas tinha dificuldade em se lembrar de si mesmo no passado recente. A figura poderosa que se tornara, um pouco arrogante e muito vaidosa, cuja presença provocava uma ruidosa avalanche de luzes, câmeras e microfones. Pensar que quase todos buscam esta espetacularização de suas vidas, este reconhecimento estampado nos olhos dos outros, a satisfação de estar em evidencia. Tal como um balão de aniversário, foi só a festa acabar para que ele ficasse sem ar, sem função, esquecido ali, à mercê dos que se ocupam da limpeza geral no dia seguinte. De repente aquela parafernália tecnológica de sua casa que tanto lhe enchia de orgulho, da qual ele se ufanava de ter bolado e conquistado, já não fazia o menor sentido. Aninha bem que tentara lhe alertar. Mas desistira. Na ultima reunião familiar (antes do “desastre”) ela já fazia comentários irônicos, sem aquela preocupação/indignação de irmã mais velha diante dos “maus” comportamentos do caçula. A experiência humana seria mais complexa do que a tarefa de buscar, comprovar e ostentar status, teria dito. Para ela, qualquer atividade humana deveria - antes de mais nada - ser reconhecida por sua responsabilidade social. Aninha seguia este modelo de gestão de vida, em que os encontros, as reuniões, a solidariedade, as trocas entre as pessoas precisavam ocupar a primeira linha de ações de qualquer ser humano. Balançou a cabeça. Com tantas coisas para decidir, surpreendia-se por este resgate de ideias sobre a vida. Ele que sempre engrossara o coro dos que consideravam sua irmã uma militante social, agora sentia-se tal e qual um mendigo desamparado, sem amigos que valessem a pena, louco por uma lembrança que lhe devolvesse um valor, uma medida de sua capacidade de ser amado. Resolveu ligar para Aninha.
quinta-feira, 3 de novembro de 2011
Quem sou eu?
Quando o historiador Walter Isaacson, escolhido pelo próprio Steve Jobs para ser seu biógrafo, perguntou-lhe ao final da maratona de entrevistas e conversas sobre sua vida, porque ele, sempre discreto, estivera tão disposto a se abrir e falar de si, ouviu algo surpreendente. Steve Jobs queria que seus filhos o conhecessem melhor, soubessem de seus feitos e entendessem as razões pelas quais ele nem sempre pudera estar presente. Personalidade midiática, glamourizado e convertido em símbolo, é provável que Steve Jobs quisesse desvendar o homem atrás do mito e quem sabe, ao ajudar a construir textos sobre sua vida pessoal, tornar cada leitor um crítico/parceiro de sua identidade. Não só pelas biografias - que as estatísticas apontam um crescimento jamais visto - mas há hoje um certo apelo para o entendimento de si e o falar de si. E os motivos não parecem simples ou poucos. Por um lado, em um mundo sem critérios rígidos e prévios para eleger celebridades, a fama projeta pessoas dos mais variados setores e as coloca sob o foco da curiosidade mundana, um verdadeiro culto à privacidade pública. Pessoas que se veem, de repente, incitadas a criar discursos atraentes sobre si e a ensinar os passos para se alcançar uma “identidade” bem sucedida. Por outro lado a invisibilidade assusta: como viver sem saber quem somos ou sem ter algum reconhecimento que nos devolva um saber sobre nós? O temor a este vazio (ou vácuo) poderia ajudar a alimentar uma dimensão imaginária do si mesmo? A verdade é que a complexidade do ser humano (que não cessa de aumentar) nos mostra que não há fórmulas mágicas e prontas que possam dar conta de todas as suas dimensões. Desde que nos pusemos a tentar entender nosso “eu” só conseguimos falar de nós como seres fragmentados, ora apontando nossos ideais, nossos sonhos, ora nossas conquistas e triunfos, ou ainda nossas descrenças e medos, nossas fragilidades e impotência, e por aí vai. A psicanalise contribuiu bastante para um olhar diferenciado sobre o funcionamento de nosso psiquismo, nossa subjetividade com seus paradoxos e incertezas. O fato de a cultura atual funcionar em grande parte pela lógica do marketing, buscando incessantemente capturar nossos desejos e paixões mais profundos para produzir ofertas de prazer e felicidade, ou criando formas de encantamento que nos projetem e nos tornem visíveis não garante a cada um, um lugar ao sol. No mundo business, por exemplo, a subjetividade ganha espaço e há um verdadeiro mercado de identidades profissionais bem planejadas, cuidadosamente descritas para que ganhem coerência, atualidade e estilo. Se no escurinho de nossas camas, precisamos nos esforçar para acreditar no personagem, nem sempre é fácil “cair na real” e viver a vida na sua dimensão real. Ao planejar sua própria biografia por saber que sua vida estava próxima ao fim, Steve Jobs pode ter desejado participar de alguma maneira na perpetuação de sua imagem. Porque não planejar seu futuro pós-morte? No final das contas todos precisamos “esquecer” que a vida dura somente o espaço entre o nascimento e a morte e precisamos sim da construção de uma confiança imaginaria no destino e da criação de ficções sobre a importância que temos para os outros ou sobre o significado de nossos atos corriqueiros.
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