segunda-feira, 13 de agosto de 2012

Tempo, tempo, tempo, tempo.


O ano era 1972, o andar era o oitavo e na sala tocava insistentemente o álbum “Clube da Esquina”. Pensando bem, é provável que as meninas que dividiam o espaço comigo naquele apê não tivessem coragem suficiente para barrar meu entusiasmo e colocar algum limite naquele ato insano de repetir à exaustão cada uma das faixas. Há uma vaga lembrança de momentos em que baixava certo sentimento de vergonha quando então eu carregava minha vitrola Phillips preta para a varanda, fechava a porta de vidro e podia me entregar livremente ao fascínio e à emoção que aquelas músicas me despertavam. Quem eram aqueles rapazes desconhecidos, aquele negro com voz de “Deus”, aquelas melodias inesperadas, mistura de música clássica e folclórica com uma pegada de rock e brasilidade? De alguma maneira eu intuía estar vivendo um momento que marcaria um antes e um depois. Mais por sorte do que azar (ali eu queimava toda a minha mesada) a melhor casa de discos de Ribeirão Preto ficava enfrente a praça XV, passagem obrigatória e diária para que eu pudesse conferir todos os lançamentos (que não foram poucos) daquele ano: Caetano com o disco “Transa”, Gil e seu “Expresso 2222”, os Novos Baianos e  “Acabou Chorare” são apenas alguns que disparam lembranças  e me carregam ao tempo em que minha vida acadêmica se confundia com um novo mundo que eu acreditava estar aos meus pés. Tempos de repúblicas estudantis, de novas e importantes amizades, de expansão do conhecimento, de amores nunca antes vividos. Ainda conservo meu acervo de LPs que guardam esta parte importante de minha história. Estávamos em plena ditadura militar e estes ousados “meninos”, cada um ao seu modo, produziam uma revolução via música brasileira ao colocar em verso e sons tudo o que nós jovens, precisávamos para entrar na dança da contracultura. Milton Nascimento e os mineiros desciam com sua new musicalidade, Caetano e Gil voltavam de seu exilio londrino dispostos a quebrar paradigmas, os Novos Baianos, moleques talentosos, decidiam inaugurar uma vida coletiva em um sitio em Jacarepaguá, Rio de Janeiro. Ao time é preciso acrescentar Chico Buarque, cujo “barulho” se concentrava nas letras, que cantavam a descabida censura, a malandragem carioca, as facetas de nossa brasilidade, os amores do ponto de vista das mulheres ou dos homens. Foi com estes grandes e queridos companheiros de vida que me deparei esta semana quando, em uma mesma página de algum jornal digital anunciavam-se Milton em seus 40 anos de carreira, Caetano fazendo 70 anos e Chico lançando mais um CD ao vivo intitulado "Na Carreira". O tempo, inexorável, mostrava sua cara. Como a me consolar, ao ligar o rádio de meu carro, quase tive que parar para poder curtir melhor a beleza da letra da música “Essa pequena” de Chico Buarque, em que ele canta a passagem do tempo comparando sua perspectiva com a da “pequena”. Verdade dura, poesia pura. Voltei ao ano de 1972, quando entrei na faculdade em Ribeirão Preto e tinha certeza que o mundo era pequeno demais para meus sonhos. O tempo nem era uma questão. Confiram:

Meu tempo é curto, o tempo dela sobra
Meu cabelo é cinza, o dela é cor de abóbora
Temo que não dure muito a nossa novela, mas
Eu sou tão feliz com ela

Meu dia voa e ela não acorda
Vou até a esquina, ela quer ir para a Flórida
Acho que nem sei direito o que é que ela fala, mas
Não canso de contemplá-la

Feito avarento, conto os meus minutos
Cada segundo que se esvai
Cuidando dela, que anda noutro mundo
Ela que esbanja suas horas ao vento, ai

Às vezes ela pinta a boca e sai
Fique à vontade, eu digo, take your time
Sinto que ainda vou penar com essa pequena, mas
O blues já valeu a pena

A cabeleira do Zezé


Jovem e sensível, a professora de uma escola infantil me contava sobre um assunto ao mesmo tempo delicado e perturbador que teria surgido em uma reunião de pais. Em meio a um importante debate sobre o futuro das famílias, dos pais e da educação dos filhos, alguns teriam questionado como seria quando as crianças de pais homossexuais começassem a frequentar as escolas, tendo que enfrentar o fato de possuir dois pais ou duas mães. Que futuro estaria reservado para estas crianças? Como responder à surpresa das outras? Ao invés de preleções de caráter moral a favor ou contra ou de previsões ameaçadoras do bem estar familiar, ela preferiu deixar ao futuro a tarefa de acomodar (ou não) tais mudanças. Mas lembrou que, a despeito de tendermos a considerar nossas crenças eternas, não seria difícil conferir as transformações sofridas no seio da família nestas últimas décadas. O tema, polêmico, esquentou ainda mais o debate sem, contudo, chegar a um consenso. De fato tentamos esquecer que para além de nossas origens biológicas ou de famílias “bem constituídas” há uma infinita variedade de caminhos e escolhas que constituem a historia de cada um. Mais confortável imaginar que nossas historias possam ser asseguradas (melhores?) se cumprimos certos protocolos - mesmo com datas de validade expiradas - talvez na tentativa de dividir a responsabilidade (sempre dura) sobre nossos futuros. É o caso desta nova disposição familiar, baseada em uma relação homoafetiva, com filhos gerados por inseminação artificial ou adotados. Estariam estas crianças condenadas a ser “diferentes”, sem chances de felicidade, ou vale a regra de que no final das contas, para que uma família passe a existir, é preciso basicamente que se queira isso? Se há boas noticias nas mudanças que aconteceram e continuam a acontecer nas famílias atuais, é que elas finalmente se livraram de alguns séculos de hipocrisia e dissimulação. Antes era crucial que se mantivesse a fachada dos casamentos e se escondessem as tensões sexuais, as violências e os constrangimentos dos lares. Maridos podiam manter uma alegre vida erótica fora de casa. Homossexuais se casavam com o sexo oposto, tinham filhos e quiçá mantinham ligações homoeróticas na calada da noite. Às mulheres restava conformar-se em viver à margem da vida pública, sem direitos, sem voz. Violências veladas ou encarnadas eram encenadas, mas guardadas no silencio dos segredos sob a égide da vergonha e da humilhação. Foram as últimas gerações que exigiram de si e dos outros uma coerência entre o sentir e o fazer. A partir daí pudemos constatar  como as identidades sexuais são incertas, como cada um de nós porta tanto traços femininos quanto masculinos, como é difícil saber o que é ser mulher ou homem, pai ou mãe. E, embora os gays finalmente pudessem sair do armário e assumir seu amor pelo mesmo sexo, nem por isso ficaram livres de viver seus (nossos) dilemas de identidade. Mas mesmo sem as antigas certezas e com milhares de questões difíceis e em aberto, a família continua sendo o laboratório da experiência humana, o lugar onde os dramas são experimentados e o amor pode acontecer. O espaço em que cada um ganha uma data de nascimento, uma origem, um passado. Minha amiga professora tinha razão. É provável que no futuro a marchinha de carnaval que ecoa o refrão “será que ele é” não guarde o mesmo sentido.

sábado, 4 de agosto de 2012

Deitado eternamente


Quem se propõe a fazer um recenseamento via web de reportagens que tomem o “Brasil” como tema, seja para avaliar junto aos outros, seu papel político, econômico ou cultural, para analisar suas condições de sede da Copa do Mundo (2014) ou das Olimpíadas (2016), prever seu futuro como nação, ou somente para tentar compor uma imagem mais ou menos consensual sobre sua “marca”, fatalmente se depara com vozes dissonantes, algumas bem negativas outras nem tanto. Tomemos por exemplo, uma pequena pesquisa feita com os estrangeiros que participaram da Rio+20 que elegeram o povo brasileiro como o melhor produto do país e reclamaram do caos do trânsito ou dos preços nas alturas. Nenhuma novidade. É verdade que as reportagens sobre cultura são geralmente elogiosas e as sobre política e sociedade, bem menos. Estamos acostumados a ser mal avaliados (por estrangeiros ou não) e curiosamente não parecemos nos importar quando correspondentes estrangeiros evidenciam as diferenças sociais expostas em nossas metrópoles com suas favelas, crianças pobres pelas ruas ou o descaso em relação à devastação ambiental. Também não ligamos quando vemos propagados de forma positiva, mas estereotipada, nosso samba, carnaval, mulatas ou futebol. É certo que recentemente passamos a receber maior atenção da mídia exterior de olho em uma economia que não se abateu com a crise da Europa ao manter um índice baixo de desemprego, um PIB razoável e um cenário em que “nascem” 19 novos milionários por dia, sobe a procura de executivos brasileiros para controlar empresas mundiais e jorra petróleo em nossas costas. Na onda deste inédito interesse por nossa “brasilidade”, pesquisadores de marketing/comunicação saíram em busca dos indícios de nossa marca Brasil, associando-a a alegria, solidariedade, sensualidade, cor, calor, inovação, juventude, valores que estariam em alta pelo mundo, mas que não parecem fazer muito “vento” na percepção que temos de nós mesmos. Por quê? Parece haver consenso de que não temos uma tradição de agregar valor ao que nos é próprio o que nos levaria a permanecer fascinados com o “estrangeiro”. Alguns atribuem isto à singularidade de nossa historia colonial acrescido de um insistente baixo índice de confiança em nossos atributos. A verdade é que não conseguimos responder muito bem porque estaríamos sendo a bola da vez e mesmo reconhecendo o grande potencial de nossa cultura ainda não nos apropriamos de nosso jeito de cria-la, pensa-la, consumi-la. É como se nossa brasilidade escorregasse como um líquido, difícil de se deixar analisar. Nos anos 20, o polêmico  Oswald de Andrade ousou proclamar o movimento antropofágico com a finalidade de incentivar o que intuía já fazer parte de nossa cultura, ou seja, a assimilação da cultura europeia – dominante na época – com o intuito de degluti-la e remodelá-la segundo a realidade brasileira. A ideia de antropofagia  cai como luva para uma tentativa de análise da marca Brasil. Ou seja, o que muitas vezes é visto como reverencia ao de “fora”, ou ao mais civilizado/valorizado/reconhecido, seria na verdade um jeito brasileiro de emprestar, de “comer” os modelos/conceitos estrangeiros para em seguida transforma-los, reinventa-los. Assim ficamos sem muitas teorias que nos expliquem, mas mantemos nossa marca de improvisação. De certa forma, palatável com as inconsistências/ liquidez deste mundo contemporâneo.

quinta-feira, 19 de julho de 2012

Casa de Bia


Os leitores que acompanham minha coluna já sabem que todas as vezes que viajo ao Rio de Janeiro acabo encontrando maneiras de registrar minha paixão por aquele pedaço do mundo. Confesso que minha empolgação tem início desde que surge, no horizonte, um motivo para a visita, o que significa comprar passagens, escrever para os amigos, marcar conversas e matar as saudades de “todos”, pessoas e lugares. A exuberância da geografia em torno da baía de Guanabara e adjacências já se oferece plena com a aterrisagem do avião no aeroporto Santos Dumont e se mantém surpreendente aqui e ali dentro do taxi, mesmo em dias nublados e frios, caso deste último final de semana. Se não me canso de admirar tanta beleza estética, também me contagio com o “carioquês” , um estilo de vida, de relação com a cidade e com o povo que me parece sui generis. Premiada, pela primeira vez fiquei hospedada no bairro de Santa Tereza, em casa de uma amiga querida. Bia, sua casa, marido, filhos, genro, noras, cachorros, compõem e expressam bem uma parte importante deste estilo carioca de ser, que não apenas ama sua cidade, conhece a fundo sua história e sua cultura, mas vive profundamente engajado com seus problemas e soluções. O que é isso? Talvez uma espécie de ocupação responsável e amorosa da cidade, de utilização de seus espaços, aproveitando o que ela oferece de bom e mobilizando-se contra os maus. É incrível como uma apropriação da cidade ou do bairro em que se mora pode fazer diferença na maneira como as pessoas convivem umas com as outras, tornando-as ao mesmo tempo críticas e abertas ao diferente. Nossas andanças matinais pelo bairro foram verdadeiras aulas da história da ocupação de Santa Teresa, com paradas obrigatórias para as vistas que o alto do morro oferece da Baía de Guanabara e para os casarões e palacetes que conservam uma parte do Rio Antigo - ocupada pelos que aqui aportaram a partir da chegada da corte de Portugal e escolheram o morro para viver porque a vista era linda, a água boa ou o clima mais ameno. Também escritores e artistas desde sempre se sentiram atraídos, seduzidos por seu charme. Onde hoje funciona o Parque das Ruínas, por exemplo, foi a casa da mecenas Laurinda Santos Lobo que reunia em seus saraus os artistas da época. E se o glamour deu lugar à desolação quando as favelas passaram a dominar o entorno, Santa nunca saiu de cena, sendo o alvo preferido, nos anos setenta, dos artistas que chegavam da Bahia, São Paulo ou Minas e viam ali, juntos, charme e vida barata. Hoje seu visual mantém certa mistura entre o antigo reformado/novo e o descuidado, suas poucas ruas “largas” não tem lugar para estacionar carros, em suas vielas passeiam moradores que se cumprimentam e muitos turistas que batem pernas, uns com mapas na mão, outros a se perder pelas vielas deixando-se surpreender pelas galerias e ateliers de artes, pelas lojas coloridas, pelos restaurantes de comida natural, nordestina, mineira, carioca. A noite são os jovens que invadem os bares (um pouco mais baratos que na cidade) quase todos exibindo música ao vivo de boa qualidade. Ao lado de sua recém Unidade de Polícia Pacificadora (UPP), o bairro possui a AMASP, uma antiga e atuante associação de moradores que no momento, entre outras reivindicações, briga para ter de volta os famosos bondinhos, desde que no ano passado um deles descarrilou, deixando cinco mortos, mais de 50 feridos e expondo o descaso dos governos com sua manutenção. Muitos dos moradores exibem a foto do bondinho em suas janelas, fazendo coro com o movimento e tornando público seu desejo pela volta do funcionamento original de suas linhas que serviam prioritariamente a comunidade a preços módicos, ao invés do plano atual de transforma-los em turísticos. Mesmo os que nunca foram a Santa Teresa conhecem estes charmosos veículos que ali circulam desde o século passado e contribuíram para ampliar o charme especial e romântico do bairro, seguindo a rota do tempo no sobe-e-desce de suas ladeiras. Na volta de nossos passeios, já na mesa que dá para a horta e para as plantas de Bia, tomando um suco verde caseiro e jogando conversa “dentro” pensava como era inevitável que minhas lembranças se sentissem em casa com aquele jeito “interiorano” de viver em que as pessoas se conhecem, sabem os nomes, os endereços, a história de cada um. Alguém mexeu no portão de Bia: era o feirante que vinha entregar as frutas, verduras e legumes que ela havia pedido de manhãzinha.

segunda-feira, 16 de julho de 2012

Por quais livros/autores dobram os sinos?


Ainda que alguns críticos/intelectuais (poucos, ainda bem) torçam o nariz para a “festa” literária que acontece anualmente em Paraty, seria muito proveitoso perguntar por que ela continua sendo um evento disputado após 10 anos de existência. E nesta toada, analisar seu sucesso não só pelo prisma do espetáculo ou mesmo do lugar que a literatura “ainda” ocupa no mundo atual, mas também pelo surpreendente número de leitores brasileiros – em um país quase sem tradição literária - que continuam a reverencia-la. E o que buscam estes “leitores”? Não é fácil responder a esta questão quando se acompanha os comentários espalhados pela mídia, tanto de “turistas” que ali comparecem ou dos inúmeros jornalistas que cobrem o evento. Mas a própria diversidade dos enfoques já anuncia a consagração deste que é um dos maiores e melhores acervos de nossa história humana: as narrativas que cumprem essa função integradora do corpo social ao acompanhar os desafios (internos e externos) de cada época. E, se a iniciativa de se fazer uma feira/festa literária tem seus interesses capitalistas, com editoras e autores sonhando em aumentar suas cifras, a proposta de tornar acessível ao público (em geral) um pouco mais do produto dos que dedicam parte de suas vidas a escrever sobre algo que interessa a muitas pessoas do mundo todo, não deixa de ter um efeito midiático interessante. Ao lado da tietagem que normalmente caracteriza algumas relações entre leitores e autores, há o fato inusitado de se forçar um escritor a “falar” sobre seu processo criativo, as escolhas de seus temas, a relação de suas narrativas com sua própria vida, enfim, faze-lo refletir sobre o lugar que a escrita ocupa em sua vida e como ele percebe/analisa o interesse de seus temas para o público. É neste confronto que se percebe a variedade das análises - sempre particulares - que acabam compondo um leque imenso de possibilidades de narrar nossa história coletiva. Pode estar a serviço de uma ampliação do contato consigo próprio, da preservação da memória ou o contrário, da tentativa de confundi-la; pode falar da própria literatura, das cidades, das injustiças sociais; pode dizer o que ainda não foi dito ou pode simplesmente guardar um anseio de ser lido/reconhecido por muitos. Os verbos também podem deslizar para o entreter, perpetuar, transmitir, refletir, e assim vai. E para isso vale falar sobre as entranhas humanas , seja para apaziguar ou impulsionar seus fantasmas. Sobre os fracassos, a solidão, o desamparo, os amores, os lugares e as pessoas que lhe são importantes; sobre os aspectos políticos e sociais do mundo, a violência, as injustiças ou a vida banal nas cidades. Como vimos não há limites. A leitura de uma boa obra pode ser uma experiência transformadora para alguns leitores, mas é basicamente uma experiência “humana” em que cada um se reconhece e dialoga com seu semelhante independente das diferenças étnicas culturais ou das distancias geográficas entre quem escreve e quem lê. Se uma análise crítica deve tentar compreender mais do que conjecturar ou agourar, podemos deixar registrado com certa satisfação que a Flip tem propiciado um bom e inusitado debate de ideias entre escritores de diferentes culturas e idades além de dar visibilidade para a literatura. E se ela, a literatura, estrela máxima do evento, consegue se manter sendo a memória cultural de uma era, se em última instancia é isso que se constrói e conserva quando se escreve, é bem capaz que os livros continuem a ser escritos e lidos. Oxalá.


domingo, 8 de julho de 2012

Corpos à deriva


O caderno da Ilustríssima (Folha de São Paulo) do domingo 1°/07/2012 trazia em sua capa uma foto impactante, um corpo mantido no ar por um guindaste, uma massa inerte. A reportagem denunciava as execuções públicas que voltaram a ser permitidas no Irã a partir de 2009. Acontecida dias antes em uma cidade próxima de Teerã, e aberta propositalmente à população que se dividia entre olhares espantados e bocas caladas ou em manifestações de júbilo pela pena aplicada, os dois homens enforcados teriam cometido crimes inaceitáveis na cultura do país, um estuprador e outro traficante. Mas na pergunta que permeava a reportagem sobrava espanto: porque retornamos a processos violentos de punições quando, já no século XXI, teríamos modos mais “civilizados” de tratar nossos “fora da lei”? Ou seja, porque haveria uma espécie de retorno do primitivo, como se o processo civilizatório da humanidade guardasse eternamente seu avesso, nosso lado animal? Não parece ser uma questão fácil de ser respondida, afinal não foram poucos os que se debruçaram sobre a história de nossa “civilização” e pensaram sobre os seus fios evolutivos, marcando as formas de poder e de alienação, assim como os avanços na construção de uma convivência em que cada um, individualmente, poderia se responsabilizar por sua ‘cidadania’ a partir do compartilhamento de certas normas e leis que balizariam os direitos, as obrigações e as punições aos infratores. Parecem existir certas figuras paradigmáticas de nosso estofo humano que se repetem ali e aqui desmascarando ora nossa violência, ora nosso lado perverso, ora o grotesco, enfim figuras do excesso, do nonsense, que denunciam o caldo virulento que nos compõe. Ao ler a reportagem, me lembrei de certas cenas de filmes, alguns sobre a vida na Idade Média e outros sobre a ocupação do Oeste americano. Na Idade Média todos viviam sob os códigos religiosos, as leis eram principalmente divinas e sagradas e as pessoas estavam condenadas a ganharem os céus por suas virtudes ou o inferno por suas transgressões e ousadias. Em geral nas cenas de execuções públicas em que corpos ardiam no fogo do “inferno” ou cabeças eram decapitadas, a população entoava verdadeiros mantras, exorcizando aqueles que teriam merecido tal pena e aliviados por terem “Alguém” que vigiasse e se responsabilizasse por estes destinos. Já os famosos faroestes, em que as cenas de enforcamentos eram parte da tentativa dos xerifes para fazer valer a lei e a ordem naquelas “terras de ninguém”, aquele circo se fazia necessário para que cada morte pudesse ter um valor diferente das outras cometidas sem o respaldo da lei. Um tempo já moderno, mas de implementação do permitido e do proibido, de construção de um espaço em que a convivência pudesse ficar minimamente garantida pelo consenso entre os homens, para que cada um, individualmente, soubesse que apesar de ser livre para decidir sobre muitas coisas, os dois interditos fundamentais da humanidade, ou seja, o tabu do incesto e do assassinato precisariam ficar permanentemente  validados. Mas como entender o retorno destas execuções públicas no Irã, em um tempo em que não haveria mais motivos para “festejar” ou “discriminar” e sim se envergonhar destas mortes sem mediações, quase “animais”, senão como um dispositivo truculento dos que detém o poder e que certamente enviam um “aviso” a todos os que se pretendem dissidentes? No mesmo domingo várias matérias na web chamavam a atenção para o retorno do mito de Fausto, estreando nos cinemas de São Paulo. Embora esta versão se baseie no livro escrito por Goethe na Alemanha dos anos 1808, o mito já existia sem uma autoria definida desde o século XV e sua reincidência só nos revela o quanto Fausto em seu pacto com o diabo, é a manifestação de nosso eterno desejo moderno em não precisar pagar a parcela de renúncia, ou seja, nós em busca do absoluto, da não-morte, do gozo do poder total, do divino. A reportagem da Folha, ao final, estaria às voltas com mais uma das previsões sobre o destino da história humana, o fim do mundo sem leis, sem flechas, sem compromissos, onde qualquer um pode escolher o horror ou a esperança?

segunda-feira, 2 de julho de 2012

Saneamento complexo


Marisa Monte está em temporada de show em São Paulo apresentando seu novo CD ou novo projeto musical, como ela própria gosta de chamar. Nele, ela homenageia artistas plásticos brasileiros, prática utilizada desde o início de sua carreira quando se apresentava ao público destacando a importância de sua formação/herança musical carioca (ou acima de tudo brasileira) e dando visibilidade aos autores de samba e outras canções de nossa raiz afrocaboclaindigena. Mais do que isso, Marisa Monte faz parte de uma geração de artistas nacionais que compuseram/interpretaram canções sobre sua época contribuindo para a construção de um acervo de novos sentidos para as vidas dos jovens. Talvez por isso ela frise que falar de amor, de vida com qualidade, de felicidade é abordar temas complexos, que exigem maturidade e escolhas difíceis. E a política? - querem saber os repórteres. Tristeza, diz ela. Ao ler sua entrevista, não pude deixar de comparar sua época com a de minha geração de jovens, em que a luta para a conquista da liberdade (de quase tudo), mas, sobretudo a esperança de uma efetiva renovação político-social estava no horizonte das possibilidades transformadoras. Pode-se dizer que a liberdade de ser, de ter, de buscar, de viver é um valor conquistado. Mas como utilizar tal valor para  transformar ou melhorar a vida de todos? A verdade é que o panorama do mundo contemporâneo está muito mais complexo. É difícil entender a lógica das forças políticas quando a mídia anuncia, por exemplo, a aliança (e a farsa) entre Lula e Maluf que não apenas queima o candidato a prefeito da maior cidade da América Latina, como deixa perplexos milhares de jovens que buscam sinais de alguma ética na vida política e social. O mesmo pode ser dito em relação às apostas feitas em torno da Rio+20 cujo resultado  mostra o quanto o caos da economia global parece impedir que os políticos se preocupem com o caos ambiental, como se não houvesse correlação entre ambos. Por aí o modelo de discussões sobre o meio ambiente segue o modelo de gestão da economia mundial (e porque não da política) em que o que se busca é a eliminação dos pontos polêmicos, alguns conchavos e nenhuma ousadia. Já a internet, como preconizam alguns, continua a promover sua silenciosa revolução com seu poder de veicular qualquer informação em escala global e instantânea.  Por ter sobretudo jovens em seu quadro de criadores e usuários, que dominam a cibertécnica, seu nascimento e sua incidência prescindiram do aval e do controle das altas esferas públicas de poder e suas regras de funcionamento (ainda) garantem um livre fluxo dos conteúdos que são ali veiculados. Se sua importância na vida de todos os nascidos a partir de então é incomensurável, já temos noticias do valor de seu poder de compartilhar/trocar conhecimento e informações com toda a humanidade, assim como de liberdade de acesso e escolha permitidos a cada um, para o bem e para o mal. Se ainda é cedo para termos uma medida da dimensão desta revolução, não dá para esquecermos o que não cessa de se repetir na busca do controle das vidas versus o horror da indefinição e da incerteza que nos assalta. Continuamos avançando com nossos desejos, ao mesmo tempo em que tememos por estes avanços. É neste vão que costumam crescer as (nossas) ervas daninhas.