sábado, 13 de agosto de 2011

Quanto custa viver?

Sob diferentes temas repete-se na mídia um coro em torno do temor de um mundo sem “governo”, ou melhor, sem sujeitos preparados para manter a existência desta nossa civilização de terráqueos. Diante da percepção da instabilidade de governos, partidos e mesmo da precariedade do antes vigoroso mercado econômico, resta um olhar expectante ao nosso universo “humano”. Quem seremos? Como viveremos? Muitos se debruçam sobre as novas gerações e, diante de um exército de jovens hightecnologicamente mais preparados, constatam horrorizados seu despreparo no quesito “custos” do viver. Seriam mimados à espera de um mundo que lhes acene com bonificações e boas surpresas. Não parecem dispostos a pagar qualquer “quantia” em pró de um funcionamento mais justo e saudável da sociedade. De outro lado, impregnados ainda por uma moral do sacrifício, herança de nossa tradição judaico-cristã, para nós, geração dos mais velhos, é difícil imaginar um mundo humano em que Deus, adultos, professores e pais não sejam mais os fiadores nem os únicos detentores das normas do viver. Esquecemos que criticamos nossos pais pela rigidez de seus valores ou pelo culto hipócrita a uma moralidade de aparência que insistia em ocultar as contradições, o sexo, as fragilidades e as maledicências. Apostamos em nossos filhos- pequenos príncipes - e sentimo-nos livres para nos incumbir de uma missão gloriosa ao oferecer-lhes felicidade, liberdade e o melhor da vida em troca de uma boa dose de orgulho ao constatar sua dependência amorosa, seus progressos, suas façanhas. Eles seriam tudo o que não pudéssemos ser ou conquistar. A verdade é que certos deslocamentos e mudanças de valores acontecem sorrateiras, ao largo de nossas possibilidades de apreensão. A ciência nos contemplou com saberes que substituíram nossas “magias” e superstições. Temos novas crenças e nossas ousadias passam a conter novas medidas. Sentimo-nos cada vez mais cidadãos do mundo e menos enraizados em nossas culturas locais. A felicidade, por exemplo, não é mais algo que estaria negado a priori graças à nossa dívida eterna com um Deus que nos concedeu a vida. Ela estaria ao alcance de todos, é quase um direito. Torna-se difícil constatar que temos valores tão díspares entre as gerações o que talvez nos dê a impressão de que o “custo” do viver anda sem preços definidos. A percepção de uma “virada” moral escancara uma falsa possibilidade de viver grátis, sem que seja necessário pagar preço algum. No extremo oposto aos sacrifícios e renúncias esperados de todos para alcançar um “paraíso”, estariam as luzes e estrelas de nossa era tecnomidiática que acena com promessas de acesso imediato, sem dores ou custos. Como ajustar os preços? Quanto custa viver? Um livro recém lançado no Brasil e escrito por um jornalista americano – O preço de todas as coisas –  embora tenha um enfoque econômico, problematiza o modus vivendi atual em que nossas escolhas estariam pautadas pelo preço que acreditamos pagar por elas ao mostrar que a atribuição de preços é muito mais complexa (e fascinante) do que sugerem as máquinas calculadoras. Mostra, por exemplo, que o grátis, como princípio, não existe, mas que ficamos capturados na ilusão de conseguirmos algo de graça, estratégia fartamente utilizada pelas promoções. Enfatiza o lugar da cultura, que além de ajudar a estabelecer os custos numa sociedade, dá uma narrativa aos preços e termina apontando como a confiança nas instituições (graças a sua transparência), ao permitir  que uma população se identifique mais com seus pares, possibilita uma melhor fluência nas transações econômicas. A verdade é que a felicidade e a liberdade – sempre valores transitórios que dependem de inúmeras circunstâncias e época - parecem habitar compartimentos opostos à seara que comanda os “custos do viver”. Se nossa geração pagou um preço ao buscar uma vida mais justa  e mais prazerosa para todos , a geração atual ainda tateia o preço destas conquistas para estipular outros sobre o que aspiram viver ou vivem. Até porque tudo o que criamos como cultura só adquire sentido se puder ser compartilhado ou se despertar paixão em boa parte dos viventes, mesmo que tocado em outros tons. Mas tem sim o seu preço.

quarta-feira, 10 de agosto de 2011

Funeral de ideais

Em um texto publicado recentemente no caderno  Ilustríssima da Folha de SP, a professora da USP e crítica literária  Leyla Perrone-Moisés discorria sobre as inúmeras tentativas de se anunciar  a “morte” da literatura durante o século que  passou. Que literatura? Em sua opinião, haveria de se reconhecer as mudanças ocorridas no mundo, nos leitores e nos escritores, além de se fazer um retorno às origens do termo cuja pretensão seria a de abarcar o conjunto das obras escritas e não ser um critério de valor das mesmas. Ou estaria esta insistência em celebrar tal funeral ligada a um certo tipo de textos que interroga e desvenda o homem e o mundo de maneira aprofundada, complexa e surpreendente? Este debate me fez recordar o filme Meia noite em Paris, em que o diretor Woody Allen, com a licença poética que somente os “velhinhos” reverenciados pela crítica se apropriam sem nenhum protesto, nos brinda com uma Paris dos sonhos de todos. Eleita por unanimidade como a mais linda cidade de nosso globo, é a Paris em sua fase áurea, em que intelectuais e artistas do mundo todo sonhavam poder viver e desfrutar de seu clima avant guarde que interessa ao diretor nova-iorquino. Com uma fotografia que enche a alma de qualquer um, Paris é mostrada em sua beleza estarrecedora e com Woody Allen realizamos nossa fantasia de viver neste passado ao sermos apresentados a Hemingway, Cole Porter, Picasso, Dali, Toulouse-Lautrec e outros. Assim como a professora em seu texto sobre a morte da literatura, Woody Allen, através de seu personagem principal - um roteirista de cinema hollywoodiano que decide realizar seu velho sonho de escrever um livro - nos conduz a esta época fervilhante em que a arte de escrever, de pintar, de compor músicas estava comprometida de fio a pavio com as ansiosas perguntas (sem respostas) sobre o sentido e o destino da vida humana. Buscando os segredos de se escrever um “bom” livro, o protagonista quer beber na fonte de seus ídolos, que lhe parecem distantes e preservados do mundo frívolo e despojado em que vive com sua noiva e seus sogros. Quem sabe por sermos seres humanos comuns que temos que suar para viabilizar nosso destino e “inventar” formas de negociar com os parâmetros internos e externos de cada época, gostamos de supor uma dívida impagável com um legado pomposo da transmissão cultural. Mas tanto a crítica Leyla Perrone-Moisés quanto Woody Allen fogem da melancolia queixosa dos “bons tempos que não voltam mais” ou dos jargões que congelam a idealização de um passado. Afinal, nunca se produziu tanto no mercado de livros, filmes, artes, músicas. Talvez, como nas palavras de “Paciência” do músico pernambucano Lenine, é preciso que possamos apostar mais no fato indelével de que a vida não pára e é tão rara. A vida só pode ser admirada pelo que se espera dela e não porque será boa. Ela é única.

segunda-feira, 11 de julho de 2011

Passagens

Ao visitar recentemente uma exposição no Pateo do Collegio (centro de São Paulo) aproveitei para rever o museu que abriga a igreja e o antigo colégio fundado pelos jesuítas que deram origem a esta que é hoje uma das mais importantes metrópoles do mundo. Dois fatos paralelos me chamaram a atenção. Em uma das salas era possível conferir a importância da era das navegações (séculos XV e XVI) para a história do conhecimento humano, um marco na visão que o homem tinha de si e do mundo, obrigando-o a rever suas hipóteses de centro do universo e ampliando o espectro geográfico em que vivia. Na sala vizinha, a história do movimento jesuíta encabeçado pelo espanhol Inácio de Loyola também apontava para uma inovação dentro de uma Igreja Católica que tentava se equilibrar nas águas renascentistas corrompidas pelo poder. Ao fundar uma Companhia (formada inicialmente por ele e mais seis colegas) voltada exclusivamente para a ação apostólica, ou seja, para levar a “palavra” de Jesus a todos os habitantes da Terra, eles se dividiram pelos diferentes territórios tanto do mundo já habitado quanto dos novos mundos descobertos fincando igrejas e colégios. Sabemos como a história do descobrimento do Brasil se mistura a um movimento de catequese de nossos índios, considerados selvagens- excluídos da escala humana- e, portanto pecadores – suas almas precisavam ser transformadas para que eles pudessem fazer parte da cultura (européia) de então. Corte. Daqui a alguns dias se inicia a nona edição da FLIP – Feira Internacional de Literatura de Paraty e seu homenageado será Oswald de Andrade, poeta que viveu intensamente o movimento de ruptura modernista no Brasil e cunhou o conceito de antropofagia cultural, processo pelo qual os brasileiros devorariam e assimilariam a cultura estrangeira para criar e fortalecer a sua própria, um molde da identidade cultural brasileira com sua multiplicidade de nações indígenas e africanas. A atualidade e universalidade de seu "Manifesto antropófago" de 1928, serão temas de debates neste evento. Irreverente e inovador, Oswald não viveu para ser reconhecido, mas polemizado. Performático, muito além de seu tempo, seus escritos, suas aparições públicas, seus casamentos com mulheres ousadas, inteligentes e poderosas (Tarsila do Amaral, Pagu) causavam ao mesmo tempo frisson e constrangimento no ambiente modernista da época. Sua influencia na produção cultural brasileira contemporânea continua viva. Corte. Está em cartaz no MASP – Museu de Arte de São Paulo- até o dia 10 de julho, a exposição "6 Bilhões de Outros" um projeto audacioso do fotógrafo francês Yann Arthus-Bertrand que reúne até o momento 5 mil depoimentos -captados em 75 diferentes países- de pessoas comuns, homens e mulheres com opções religiosas, classes sociais, profissões, etnias e estilos de vida diferentes que respondem a questões simples sobre suas lembranças de criança, seus sonhos e projetos futuros. São 40 questões relacionadas à vida, a morte, ao amor, a felicidade, também aos medos e sofrimentos, ou seja, ao sentido que cada um dá à vida. Na mostra, as respostas estão reunidas em um grande mosaico de projeções em que os rostos dos entrevistados se alternam e parecem conversar diretamente com os expectadores, o que cria um laço de intimidade e identificação humana. Do pescador brasileiro a advogada australiana, da artista alemã ao agricultor afegão, todos respondem às mesmas perguntas possibilitando a quem assiste uma confrontação com a diversidade, com as divergências e com o que temos em comum, de forma muitas vezes surpreendente. Foi esta surpresa que levou o fotógrafo a pensar este projeto. Famoso por suas fotos aéreas há poucos anos atrás seu helicóptero sofreu uma pane que o obrigou a parar em uma aldeia de Mali. Recebido por uma família local, passou horas conversando sobre o que seriam as coisas mais importantes da vida. Tal e qual uma visão aérea de nossa diminuta importância na geografia universal e de nossa necessária irmandade na luta pela sobrevivência e pela vida em comum, ele quis saber mais sobre nós, homens e mulheres, que parecemos - nos recantos de nossas almas - desejar as mesmas coisas. Momentos diferentes de nossa história humana em que pressionamos estreitas passagens a fim de expandir nosso conhecimento, sobre o mundo, sobre outras culturas, sobre nós mesmos.

sábado, 2 de julho de 2011

Escrever sobre o quê?

Uma amiga, ao saber que há três anos mantenho uma coluna semanal no jornal A Cidade, quis saber sobre o que eu escrevia. Sabendo-me psicanalista, concluiu, antes que eu pudesse responder, que provavelmente tal coluna versasse sobre respostas para as perguntas mais comuns feitas para este tipo de profissional. Sua apressada dedução deixou-me quieta por minutos e muito inquieta a pensar sobre algum fio que pudesse costurar os variados temas aqui tratados. Sem poder fechar a questão de uma maneira que pudesse satisfazer tanto a sua curiosidade quanto as minhas “verdadeiras” razões para eleger determinados assuntos, optei por concordar com parte de seu argumento de que a longa, difícil e permanente tarefa de me tornar uma psicanalista pudesse ser o viés utilizado para debatê-los. No entanto sua questão permaneceu insistindo ao longo dos dias. Afinal estou entre os que acreditam que nossas escolhas não são casuais, incluído aí o caminho profissional que traçamos ao longo de nossas vidas. Estamos sempre tentando responder – muitas vezes sem perceber- alguns “enigmas”sobre nós mesmos. É verdade que diante de algumas pessoas que cultuamos e admiramos seja por imaginarmos serem elas detentoras de algum tipo de saber que não possuímos, seja por serem artistas de diferentes áreas e, portanto protagonizarem criações as quais nos sentimos totalmente incapacitados para produzirmos, ou aquelas a quem olhamos invejosos por realizarem algum tipo de sonho nosso (aberto ou oculto), ficamos curiosos e até desejamos vasculhar suas vidas. As inúmeras biografias não fazem sucesso por caso. Ao elegermos alguns ídolos, aspiramos conhecer a rota de seus desejos ou seu modo de realizá-los. Queremos saber como inventar um futuro que inclua nossos sonhos, que ganhe sentido e nos traga satisfação, orgulho de nós mesmos. É assim que dirigimos nossos olhares aqueles que imaginamos terem conseguido. Pensei sobre o quanto o exercício da psicanálise desvenda o lado “B” de nossas pretensões ao reconhecer um paradoxo de nossa condição humana: somos ao mesmo tempo dependentes absolutos de outro humano, mas só temos uma “vida” se pudermos nos tornar independentes, autônomos e se pudermos ser os “pedreiros” desta obra. Neste percurso, nos mares quase sempre turbulentos de nossa existência emocional, ansiamos por uma ética do fazer sentido, que nos ofereça “de verdade” um lugar humano para existir. Mas entre nossas necessárias ilusões, aquelas que nos permitem construir lugares imaginários para nós e os outros, entre nossas inevitáveis idealizações de passados ou de futuros, impõem-se um viver cotidiano, aquele que nos convida a subir a cortina todos os dias, a cumprir mais uma rotina acelerada ou atrasada e a apagar as luzes antes de cair (se tudo der certo) no sono prometido. Longe de banalizar este dia a dia, o que me faz querer escrever repetidamente sobre mulheres e homens comuns às voltas com seus pequenos ou grandes dramas, suas inquietações mais ou menos corriqueiras, seus temores, seus pecados, é uma aposta muito particular no valor da única vida que temos e da qual na maioria das vezes não conhecemos o enredo nem o roteiro.

Quem viver verá?

Alguns filmes de ficções sobre o futuro da humanidade costumam mostrar um mundo “noir”, em um cenário em geral pós-moderno misturado a uma degradação ambiental (e pessoal) tudo permeado por uma alta tecnologia. No mundo do trabalho ou se está em uma espécie de imenso bazar de serviços prestados por uma população de excluídos ou em mega-empresas que funcionam de forma automatizada em imensos, silenciosos e ultramodernos prédios, com portas monitoradas. Se por um lado anuncia-se um mundo que caminhou na direção da realização de muitos dos desejos mais humanos, são postos em evidencia os custos e os restos e ressaltadas as perdas de possibilidades de trocas e encontros entre cada um. Na animação francesa de 2006 intitulada Renaissance a história se passa na Paris de 2054, uma cidade onde todos os movimentos são monitorados e gravados e os arranha-céus se impõem sobre as obras de arte da arquitetura dos séculos passados. Ali uma empresa de cosméticos (Avalon) domina toda a cidade com seus outdoors eletrônicos e banners holográficos prometendo beleza e juventude eternos e influenciando todos os aspectos da vida de seus moradores. A esta dupla será acrescentada a imortalidade, responsável pelas disputas, mortes e desaparecimentos em torno da aquisição de suas pesquisas. Já Blade Runner, de Ridley Scott (1986), um dos filmes cult da década de 1980, se passa na Los Angeles de 2019. Na trama a Tyrel Corporation que criou robôs (replicantes) virtualmente idênticos aos seres humanos (inteligentes, mais ágeis e fortes) para serem usados fora da Terra em tarefas perigosas da colonização planetária, decide contratar caçadores de andróides para “removê-los” devido a uma rebelião de alguns que reivindicam um tempo maior de vida. Nesta caçada, muitas questões sobre a existência humana são colocadas. Em ambos os filmes, o cenário é opressivo, a noite e a chuva se impõe indicando que a idéia de uma ciência que não aceita mistérios, que não respeita a fronteira entre a vida “natural” humana e a artificial seria danosa para a humanidade, por transgredir um legado cultural de sentidos para nós. É curioso como em 2011, já não estranhamos mais que nossos corpos precisem se adequar aos novos tempos e para isso sejam convocados a ficarem mais compatíveis com uma imagem em que não apareçam seus sinais de excessos, de faltas, de envelhecimento. São poucos os que se recusam a se submeter a programas intensos de qualidade de vida, de bem estar ou de estetização ou contestam o fato de que a tecnologia possa aprimorar e reformar a espécie humana. A reportagem de capa da Revista Veja do dia 15 de junho último anunciava pelas vozes do inglês Aubrey de Grey e dos americanos Raymond Kurz­ weil e Timothy Ferriss que o homem que viverá 1000 anos já havia nascido. A verdade é que na linha do rápido desenvolvimento das tecnociencias das últimas décadas, o controle do envelhecimento e as várias intervenções direcionadas ao rejuvenescimento levam a crer que um dos desejos mais antigos da humanidade, a imortalidade, pode enfim aparecer como luz no final do túnel. Não mais pela promessa de um paraíso pós-morte, de um Olimpo habitado por alguns deuses ou de mitos antigos sobre ilhas de fantasias onde todos seriam imortais. Segundo suas previsões, dentro de uma década, a cada ano vivido será acrescentado um ano na expectativa de vida das pessoas: esta é a sedu­tora promessa de um upgrade biológi­co humano. Na concepção da ciência, somos como máquinas, portanto, potencialmente consertáveis, e mesmo que nosso corpo biológico padeça, poderemos manter suas informações em uma espécie de memória artificial. É pouco? Há dois anos, Kurzweil fundou no coração do Vale do Silício, Califórnia, a Universidade da Singularidade destinada a preparar a humanidade para a acelera­ção das mudanças tecnológicas, uma verdadeira tro­pa de elite apta a lidar com o impacto dessa transformação. Já em 2045, em decorrência da ve­locidade dos saltos da computação e das tecnologias associadas a ela, será impossível distinguir as máquinas mais avançadas dos seres humanos. A inteligência artificial chegará ao patamar dos ho­mens e transcenderemos nossas limi­tações biológicas. Morrer será difícil, ainda que inexorável. Os cegos voltarão a enxergar por meio de olhos biônicos,os amputados terão pernas artificiais que reagirão ao comando di­reto do cérebro, os genes que não nos in­teressam, como os que levam à obesi­dade ou a doenças degenerativas, serão silenciados, enquanto outros serão re­programados e ativados. Nanorrobôs viajarão por nosso organis­mo, combatendo enfermidades e fazen­do microcirurgias internas. Ou seja, no futuro singular dos humanos, as velhas certezas, como a morte, passam a ser relativas. As ficções que chamamos de “científicas” e que em geral prevêem um futuro de “tecnologias” avançadas na eterna busca de um controle cada vez mais absoluto sobre o imponderável da “natureza” são em sua maioria apocalípticas. Talvez porque elas sejam produto de questões que não conseguimos responder sobre os nossos próprios limites ou nossos temores pelos nossos mais recônditos desejos de imortalidade. Quem viver poderá responder?

O lugar do amor

Já nos acostumamos com certas celebrações e sabemos que a mídia não deixa de “capitalizá-las”, a exemplo do dia dos namorados, quando proliferam convites a novas maneiras de expressar os “amores” entre dois, inimagináveis dicas de presentes, lugares exóticos para se estar, viagens românticas ou experiências inusitadas. Na ânsia de cobrir os desejos humanos, mesmo a grande leva dos “excluídos” deste Olimpo do amor pode encontrar conforto nas manifestações divulgadas via rede social ou ainda em produções (filmes, blogs) que se ocupam em tentar colocar palavras em suas possíveis e sofridas dores ou mesmo encenar o lado B destes “amores”, suas agonias e incertezas. Ou seja, se há tamanha galera do lado de fora esperando e querendo entrar é porque o show continua fazendo sucesso. Mas ainda há mais. Alguns aproveitam a ocasião para lembrar a todos que o verdadeiro amor é aquele que se experimenta ao ter um filho. Em geral, ovacionado por muitos, este argumento corrobora com a expectativa de que todos os pais “amem” seus filhos incondicionalmente. Ok, que o amor seja o grande protagonista do psiquismo humano não se tem dúvidas. Desde que embarcamos em nossa viagem moderna ele já gerou um enorme acervo cultural que nos auxilia a elucidar nossos dramas e dilemas em torno de sua busca. Somos praticamente reféns do amor nessa incessante (e impossível) viagem para sermos únicos e especiais para alguém. E como um ideal, ele funciona legal ao nos proporcionar uma visão de vida, nos oferecer alguma remissão e um significado à nossa existência. São poucos os que não se declaram dependentes de um olhar amoroso, quando solicitam a um outro que respondam sobre sua importância. Uma aposta alta e por isso sempre acompanhada do medo do não, do abandono ou da traição. Sim, porque sabemos que o amor é o habitante principal da terra do romance, mas mesmo assim construímos pontes e acessos imaginários para a sua “posse” completa. Ao final, quando às duras penas e perdas podemos ajustar nossos olhares às suas cores pastéis, quando podemos passar deste lugar em que precisamos ser amados incondicionalmente para outro onde é necessário contar com o risco de não ser amado ou ser amado de forma diferente do que desejamos, é possível localizá-lo nos pequenos detalhes, nas trocas de olhares, nos pactos, nos sorrisos, na antecipação de certos desejos, na cumplicidade com as fragilidades, enfim, na responsabilidade com os cuidados e afetos que cada um (por sua conta e risco) se compromete a assumir. Nem um mar de alegrias sem fim, nem um lago escuro e gelado em que só habitem feras hostis. Mas pode ser uma razão para se viver. Como bem disse Renato Russo, “quem um dia irá dizer que existe razão nas coisas feitas pelo coração? E quem irá dizer que não existe razão?”

Aqui, ali, em todos os lugares

Uma amiga que há muitas décadas se ocupa em despertar os jovens para a importância de seu papel na escolha da profissão de educadores, constatava desanimada o aumento na porcentagem de evangélicos entre seus alunos, o que, segundo sua percepção, muitas vezes os impedia de se engajar em questões cruciais para o seu desenvolvimento pessoal e por decorrência, profissional. Perguntava-se por que, em um mundo tão mais livre, tão mais aberto ao debate e às inúmeras opções de escolhas para se viver, estes jovens universitários pareciam se “proteger” - atrás de crenças e práticas “sagradas” - de seus sentimentos morais, evitando todo e qualquer questionamento sobre si mesmo. Nesta semana em uma reportagem intitulada “a preguiça como profissão”, a Folha On line trazia depoimentos de jovens já formados, com domínio de uma ou mais línguas, com um currículo de viagens pelo mundo, mas que escolhiam ficar algum tempo sem trabalhar, à deriva pela internet com os amigos ou com os videogames, muitos com a anuência de seus pais. A frustração de minha amiga tinha um sentido especial para ela que viveu e lutou em sua juventude, contra uma civilização que impunha, entre outras coisas, limitações à exploração do corpo, do prazer, da criatividade. Da sua história pessoal ela guarda com orgulho um movimento de ruptura, um deslocamento de suas heranças familiares em direção ao futuro, oferecendo-se como elemento catalisador das novas tendências de sua época: mudar a si mesmo e ao mundo com seu desejo na carona da utopia de reinvenção da ordem social. Pensemos em como os jovens, hoje em dia, podem e devem escolher o que quiserem,seja em termos profissionais, amorosos ou em relação aos valores pessoais, assim como suas famílias são incitadas a deixá-los livres, não impondo sua própria referência. Há uma expectativa geral para que sejam felizes, bonitos, corpos perfeitos e saudáveis prontos a consumir os inúmeros e diversificados objetos oferecidos pelo mercado. Aqui e ali sabemos que alguns pais lamentam a falta de ideologias no mundo atual que tenham o mesmo apelo à participação no espaço político como em décadas anteriores. Mas a possibilidade dos jovens se “engajarem” no mundo em que vivem e inventarem seu futuro não está atrelada somente ao momento cultural. Em qualquer época, eles podem ser promessas de realização dos sonhos das gerações anteriores, rebeldes sem causa, alienados, podem causar medo ou incomodar ou ainda podem se assustar com o mundo que lhes espera. Em geral eles são tanto objetos de inveja quanto de temor, mas uma boa porcentagem fica capturada nos sonhos e desejos de felicidade absoluta de seus pais ou em seus pesadelos e desordem. Alguns privilegiados conseguem localizar onde está o impossível, o que está interditado e o que se faz impotente na cultura,e de alguma forma agem no sentido de provocar mudanças, mas todos, de uma maneira ou de outra, pedem que os escutemos, que possamos perceber seu vaivém entre a angústia e a depressão ou em suas tentativas de se defender de uma com a outra. A passagem para o mundo adulto com suas limitações sociais quase nunca é feita sem luta, sem transgressões. Por seu lado a multiplicidade de ilusões imaginárias que a cultura oferece vem colada a um excesso de exigências, mesmo que sob a forma de promessas de prazer e realização. Por isso é possível que muitos pais tendam a facilitar ao máximo a vida de seus filhos, e resistam a lhes impor restrições ou a discutir valores. Por outro lado, muitas religiões acenam com a possibilidade de regulamentação da vida através de sua fixidez de regras, o que alivia o desamparo - às vezes insuportável - de muitos jovens ( e de seus pais). Cada qual com seu preço.