sexta-feira, 15 de fevereiro de 2013

O que queremos?


Em meados de janeiro deste ano a mídia divulgou o resultado de uma pesquisa realizada em conjunto por duas universidades alemãs (Universidade Humboldt e a Universidade Técnica de Darmastadt)  que revelava que uma em cada três pessoas sentia-se pior ou mais insatisfeita com a própria vida após visitar o Facebook  e visualizar o conteúdo compartilhado por amigos em situações de sucesso. A manchete destacava  que testemunhar as férias, a vida amorosa e o sucesso profissional dos amigos no Facebook causava inveja, infelicidade ou sentimento de solidão em grande parte dos entrevistados. Fotografias de férias e comparação de felicitações de aniversário, de incentivos ou de carinho estariam entre os itens mais duros de engolir, quer dizer, aqueles que mais provocariam inveja e ressentimento, a depender da quantidade dos "curtir" ou dos comentários postados. Embora a ideia de utilizar o Facebook como plataforma para se obter um panorama atualizado das novas formas de convivência virtual seja muito interessante, o uso dos resultados incitava os jovens a desistir da rede social e assim evitar os “maus” sentimentos, algo no mínimo questionável. Mal comparando seria como se a cada vez que os filhos reclamassem aos pais de sentirem-se “menos”, de desejarem ter a vida de alguns amigos, de não suportarem conviver com uma suposta felicidade de outros na escola, estes pais providenciassem rapidamente uma mudança desta escola para algum lugar “melhor”, que pudesse protegê-los destes desconfortos. Por outro lado a pesquisa deixou de fora um dos mais pungentes e duros sentimentos que a rede social escancara, a dor de cotovelo. Percebam que evitei usar a palavra ciúmes por imaginar a “dor de cotovelo”, tal como é usada em nossa cultura, como abrangendo melhor as várias dores contidas em separações amorosas. Entrar no Facebook para acompanhar a vida do(a) ex, seus passos, suas fotos, sua nova paquera, a constatação de que ele(a) pode ( ou consegue) prosseguir sua vida, é um dos sentimentos mais devastadores pois convoca aquele que está sofrendo a aceitar o fato de não ser tão especial como desejaria . É ter que encarar sua “insignificância”, ao mesmo tempo em que deverá (tentar) processar seu luto pela perda daquele (a) que ainda lhe é tão especial. Mas analisar a relação dos usuários do Facebook  com suas dores, ou denunciar que esta rede pode expor as fragilidades de todos que a utilizam não necessariamente é um mal exercício. Pode isto sim, ser um convite para se pensar sobre possíveis novos modos (não necessariamente melhores ou piores, mas diferentes) de construção de convivência no espaço social. De saída, tal convivência estaria muito mais pautada na expectativa de uma “irmandade”, que funciona ao mesmo tempo como suporte e proteção, ao oferecer um “compartilhar” dos sucessos e fracassos dos amigos, mas também - não poderia deixar de ser - como polo de sentimentos de rivalidade, inveja e ciúmes, que como todos sabem, são humanos demasiado humanos. Ou melhor, são impasses e desafios desta nova existência humana, deste modo de convivência com os pares em que a liberdade para se fazer e dizer o que se quer exige necessariamente um confronto com as faltas e as fragilidades de cada um. Resta-nos  analisar as estratégias de negação da realidade, ou melhor nossas formas de nos defender e nos proteger destes sentimentos e saber distinguir as boas formas daquelas que são ruins. Você sairia do Facebook para evitar sofrer?

terça-feira, 12 de fevereiro de 2013

Zona de desconforto


Em meados do mês passado, zapeando com o controle da TV me deparei com um programa da apresentadora Marcia Peltier em que o entrevistado era um jovem rapaz que discorria sobre a história das drogas no mundo e no Brasil. Jornalista e editor da Revista Galileu, Tarso de Castro vinha a público divulgar os dados de sua pesquisa sobre este tema, o que teria resultado na publicação de seu livro “Almanaque das Drogas”, uma espécie de catálogo que pretendia abranger aspectos históricos, econômicos, políticos e de saúde deste universo. À pertinência do tema somava-se o fato de estarmos vivendo em meio ao barulho provocado pela polêmica da internação compulsória de usuários de crack que ganhou destaque na mídia, chamou a atenção da população e dividiu as opiniões. Perguntava-me o que seria um “bom” debate de ideias para um tema tão importante e complexo, que afeta em diferentes níveis a vida de todos os cidadãos? Difícil resposta principalmente ao se levar em conta ser a Adição um fenômeno que transcende o uso do que convencionamos chamar de drogas, caso do álcool, maconha, cocaína, crack, ecstasy, etc. para citar aqueles que mais facilmente elegemos como objetos “culpados”. Lembrando ainda serem estes “objetos” utilizados pelos “viciados” de forma compulsiva e incontrolável, fato que se constitui um enigma para a maioria e um drama para os familiares. A adição ou o “vício”, porém, é uma forma de relação abusiva e compulsiva com os mais variados objetos, e para além daqueles velhos conhecidos, pode-se estabelecer um tipo similar de relação com a comida, o esporte, os exercícios físicos, o sexo, a internet, o trabalho, as compras, o celular, o computador, etc. Ou seja, o que está priorizado nesta relação é mais o “uso” que se faz do objeto do que o objeto em si, já que o objeto eleito pelo “viciado” assume um poder quase mágico sobre ele e adquire um lugar de promessa de paraíso perdido. Para quem está de fora desta “relação de paixão”, no entanto, é fácil perceber a alteração que a vida psíquica e física do adicto sofre, sua lenta escravização ao objeto de seu vício e a perda total de sua liberdade de escolha ao perder sua capacidade de decidir usar ou não aquela “droga”. Ela passa a ser necessária, de forma absoluta. Quem está de fora, sente-se fora mesmo, excluído, perplexo, impotente e incapaz de interromper aquele ciclo. Aqueles que convivem com “viciados” (principalmente os dependentes químicos), incluídos aqui todos os que cuidam ou que fazem parte de redes de atendimentos relatam de tempos em tempos seu desânimo ao perceberem-se enredados neste circuito quase fechado. Quando se trata de politicas de saúde pública as coisas parecem ficar mais confusas. As sociedades em geral, a brasileira em particular, costuma tratar de forma leviana seus desvalidos, muitas vezes vistos como “dejetos”, o que promove políticas mais focadas na higienização do que no acolhimento. Não temos uma tradição de discussão ampla e coletiva sobre questões como estas e, por isso, a grande maioria da população espera que o Estado cumpra seu papel de solucionar o problema, de preferencia adotando medidas fortes e “eficazes”. Do outro lado, não é raro que especialistas e técnicos de diferentes orientações teóricas e clínicas, cujas vidas estão comprometidas com o atendimento (em várias frentes) aos drogaditos  concordem ser estes cuidados extremamente complexos. De saída, o “público” é heterogêneo o que acarreta medidas diferentes para cada caso. Uma simples pergunta para apenas um dos grupos de dependentes, por exemplo, pode nos revelar como o assunto exige cuidados: os usuários de crack estão nas ruas porque são viciados ou se viciam por serem moradores de rua? Não há respostas corretas ou únicas. Elas são muitas e variadas, assim como as histórias que guardam as dores e o sofrimento de cada um. O resgate da Historia pode aumentar nosso entendimento por revelar que não existiu e nem existem sociedades humanas que não tenham criado formas de escapes para aqueles de nós que não podem suportar a realidade. Da neurose à loucura, passando pelas drogas, a mente humana não cessa de tentar evitar o sofrimento através de variados métodos que anestesiam ou possibilitam a fuga da realidade incômoda. Métodos muitas vezes “potentes” que visam conter nossas angústias, principalmente quando elas ameaçam nossa sobrevivência física, mas especialmente a psíquica.

quinta-feira, 31 de janeiro de 2013

Impacto social


Assistir ao filme “No” impõe a todos um sobrevoo sobre a história recente do Chile. O golpe militar que derrubou Salvador Allende em 1973 - presidente eleito neste país em1970 - é considerado o mais cruento da história da América Latina, deixando um saldo de três mil mortos e desaparecidos, além de milhares de presos políticos, exilados e torturados. Depois de 15 anos à frente de tal ditadura sangrenta, Augusto Pinochet foi pressionado pelos governos internacionais a submeter-se a um plebiscito popular que legitimasse seu desejo de mais oito anos no poder. Certo de que os plebiscitos feitos sob ditaduras costumavam ser favoráveis a quem detinha o poder, foi surpreendido pela vitória do “não”. É sobre esse fato verídico que o filme “No”, de Pablo Larraín discorre. O diretor conta que tinha 12 anos quando as emissoras de TV do Chile exibiram a vitória apertada (56% contra 44%) do referendo que rejeitou a permanência do governo militar no país, um acontecimento que marcou sua vida e a de seu país. A partir da leitura da peça  “O plebiscito”, do escritor chileno Antonio Skármeta, e de muitas pesquisas sobre o período, Larraín decidiu priorizar as campanhas publicitárias do Sim e do Não que tinham 15 minutos diários na televisão para convocar o povo a votar a seu favor. Na época, o jovem René Saavedra, filho de um exilado político que volta ao Chile, e talentoso publicitário em franca ascensão no país, é convidado a assumir a campanha do "não" e acaba criando uma peça inovadora para a época, que vendia a ideia de esperança e felicidade, ao invés de expor os terrores da era Pinochet. De forma astuta, a campanha derrota o ditador utilizando as mesmas ferramentas de sua propaganda política com fartas visões sobre um promissor futuro do país. Mas seria mesmo esta vitória apenas fruto de uma manobra publicitária bem feita? Ao assistir ao filme com amigos, finda a sessão, ainda que o final feliz produzisse uma sensação de redenção, no burburinho dos comentários, espectadores mais engajados confessavam certo estranhamento, uma desconfiança de que o publicitário, longe de comungar com alguma ideologia política, teria apenas “vencido” uma concorrida disputa com seu rival, no caso a turma que cuidava da campanha do “sim”. Instalada a polemica, surgiam as perguntas. Teria sido a peça publicitária decisiva para que o governo Pinochet ganhasse maior visibilidade negativa, nacional e internacionalmente, obrigando-o a deixar o governo dois anos depois? Qual teria sido seu diferencial? Que valor moral atribuir aos métodos utilizados na campanha, mais próximos ao marketing político (tão vigente na atualidade)? Ou ainda, porque deixar de fora o sofrimento legítimo dos que foram destituídos de seus direitos, dos que perderam seus familiares, dos que foram torturados? Como não usar o espaço dos 15 minutos para denunciar as barbaridades cometidas pelo governo compulsoriamente censuradas para o povo? Vale dizer que o filme sustenta um clima de suspense do inicio ao fim só por mostrar as tensões vividas pela equipe do “não” que, pisando em ovos em um governo sob censura, precisa fazer sua omelete parecer maravilhosa, apesar de quase sem ovos. Tarefa ardilosa que este publicitário vivido pelo ator mexicano Gael García Bernal tenta desempenhar, convencendo a turma do “não” a eleger programas otimistas, que pudessem despertar principalmente aos jovens, convocando-os a reconquistar a alegria de viver e a confiança no futuro ao divulgar seu slogan "Chile, a alegria está chegando”, fazendo-os acreditar que seu voto poderia mudar a situação politica do país. De meu lado, surpreendi-me positivamente pela escolha da “alegria”. Fiquei imaginando (talvez de forma romântica) que aquele “menino” já tinha em seu currículo as duras experiências dos que precisam viver exilados de seu país. Quem sabe em sua volta, já desenhasse a possibilidade de um novo país, por isso insistia em despertar nos jovens a paixão de viver uma nova época e uma nova cultura. Pode ser que quisesse transformar, pela via da publicidade - que como sabemos corre atrás dos desejos humanos- seu desejo de pertencimento a um novo país incitando um sentimento de humanidade comum a todos os chilenos, sem diferenças de idade, posição social, partidos políticos. Se o mundo não cessa de refazer ciclos em que alguns se instituem donos absolutos de uma verdade por algum período, há que haver os que rememoram a força do desejo de renovar em cada um, e da possibilidade de fazer historia com alguma ousadia. De forma sensível, o diretor farejou nos comerciais produzidos na época (ele não os reproduziu e sim utilizou os originais) algo de diferente sob o céu de brigadeiro. Vale a pena conferir este tônus de uma fina ironia, bom humor e alegria.

(No), de Pablo Larraín, Chile / França / EUA, 2012

Nossas majestades


Em conversas com amigas queridas, quase todas avós, o tema invariavelmente se volta para as surpresas, em geral deliciosas, que o(a)s pimpolho(a)s oferecem para suas vidas. Os olhos brilham, os peitos se enchem de orgulho, as palavras saem em tons amorosos e animados, sem constrangimentos e principalmente sem dúvidas de que eles mereçam toda esta reverência. Também é fácil constatar que qualquer barreira que preexista à chegada dos netinhos, derrete-se assim que estes passam a interagir e incluir em suas vidas suas avós, instaurando uma espécie de encantamento. Há pouco tempo uma amiga querida que havia visitado o Museu do Prado e se empolgado com o quadro “As Meninas” de Velásquez, - que tem como personagem central a infanta Margarida da Áustria - foi surpreendida com a neta que, ao contemplar a menina no quadro, imitou sua pose majestosa, reconhecendo-se ali: “Mas essa sou eu, vovó!” De certa forma ela captara que a majestade da criança no quadro, não estaria no fato de ela pertencer à realeza (como poderia ter sido na época em que o quadro foi pintado) e sim de ser uma criança, e merecer os olhares extasiados dos adultos à sua volta. Se em um primeiro momento o comentário da neta disparou risadas satisfeitas e um balançar de cabeças que confirmavam sua posição, dias depois minha amiga questionava-se sobre esta condição especial. O que o futuro reservava para estas crianças, tão intensamente amadas, tão investidas pelos adultos que a rodeiam? Como elas poderiam desenvolver ferramentas para administrar suas decepções, frustrações e perdas? Que destino nefasto estaria à espreita de tanta empáfia? Pusemo-nos a confabular sobre o assunto e sem que nos déssemos conta percebemos que nesta era de domínio absoluto senão dos infantes, mas da própria infância, em que nada mais nos resta a não ser depositar as expectativas de realizações de nossos desejos neles, quem não suporta perceber que eles possam viver suas dores e não “nosso desejo de felicidade completa", somos nós mesmos, os adultos- mães/ avós. Assim como amamos nossas crianças a ponto de sentir dor de amor, ficamos desolados, por vezes desorientados, quando elas sofrem as “dores” do viver, e não é raro que atribuamos essa pena às nossas falhas. Nossa geração não pode “desidealizar” a infância, e quem sabe caberia às gerações mais novas, dimensionar melhor este percurso. Uma nota na mídia digital desta semana incrementava nosso debate ao anunciar que a série "Girls"-  que estreia sua segunda temporada em canais pagos no Brasil - concorreria ao Globo de Ouro. Para Lena Dunham, de apenas 26 anos, criadora, produtora e protagonista, seria o fato da série mostrar a vida da geração americana que gira em torno dos 20, sem muitos retoques nem glamour, a chave de seu sucesso. Em entrevista, Lena conta que pertence à primeira geração globalizada e “internetizada”, que cursou faculdades usando Ritalina, mantém presença constante nas redes sociais, e convive em paz com a falta de privacidade. Na série, cada uma das “girls” representa um estilo – certinha, romântica, libertária, inteligente – como a cobrir modos diferentes de se haver com a vida, mas cujos feitos estão longe de seguir a cartilha da felicidade que os mais velhos esperariam delas. Ao contrário, todas escancaram a marca de uma geração de incertezas, bem menos eufórica e sambando para cumprir com tantas responsabilidades. Nosso imenso amor por nossas crianças, se deveria produzir um saber sobre o que é ser amado, ou mesmo sobre os limites deste amor, aposta muito mais em uma “reparação”, uma vida feliz, sem dores. O mal estar de minha amiga é perceber que cabe a nós adultos, em meio a este grande amor, oferecer a eles proteção, condições de sobrevivência / desenvolvimento e confiança suficiente para ousar sem lesar a si ou ao outro. E isso dá um frio e tanto na barriga, já que quase nunca conseguimos seguir uma “cartilha” tão equilibrada.

sexta-feira, 18 de janeiro de 2013

Doses (necessárias) de imaginação


É possível que um dos melhores lugares do mundo para se fazer uma pesquisa sobre fé/crenças religiosas seja a Índia, país que convive com um surpreendente pluralismo religioso. O hinduísmo, por exemplo, é uma religião de muitos deuses e deusas, que em momentos especiais encarnaram o Ser Supremo e Absoluto para se tornarem acessíveis à humanidade. Além disso, há no país um grande número de muçulmanos, budistas, católicos, judeus, etc. Segundo o escritor  Yann Martel, foi durante uma viagem a este país tão instigante em seus contrastes que ele decidiu escrever seu livro, vencedor do Booker Prize de 2002, “As aventuras de Pi”. Antes de se tornar um filme que está em cartaz atualmente e agradando a muitos, a história sofreu uma denúncia de plágio, que de certa forma foi confirmada pelo autor, que teria lido uma resenha no NY Times sobre o livro do escritor gaúcho Moacir Scliar, “Max e os felinos”. Esclarecimentos feitos, passados dez anos, quem está na direção deste roteiro é o taiwanês Ang Lee, que já revelou sua extrema versatilidade, sensibilidade e ousadia em filmes tão díspares e importantes como “ O Segredo de Brokeback Mountain” , “O Tigre e o Dragão” e “Razão e Sensibilidade”. Neste filme o indiano Piscene (Pi) Patel  já adulto, professor bem sucedido e residente no Canadá, é procurado por um escritor que recebeu uma dica de um amigo em comum para que se inteirasse da “boa” história de sua vida. Mais precisamente sobre a grande aventura do jovem Pi, cuja família, dona de um zoológico em Pondicherry,  Índia, decide fechar o empreendimento e se mudar para o Canadá, local em que pretendiam vender os animais e reiniciar a vida. Durante a viagem, o cargueiro naufraga devido a uma terrível tempestade, fazendo de Pi o único sobrevivente, que no entanto precisará dividir o bote salva-vidas com uma zebra, um orangotango, uma hiena e um tigre de bengala chamado Richard Parker. Mas para que o escritor entenda sua história, Pi precisa narrá-la desde a sua infância, do significado de seu nome (uma piscina de Paris que teria encantado seu pai, grande apreciador da natação, e das lindas moças que ali desfilavam), de seu constrangimento na escola pelo apelido Pi que lembrava o ato de fazer xixi e era motivo de gozação permanente, e de sua curiosidade pelo sentido da vida e das relações entre as pessoas, que o fazia um pesquisador fervoroso das religiões, mesmo contra o gosto de seu pai ateu. Há muito mais fatos interessantes e ainda que o filme possa ser resumido à grandeza de sua produção, de seus efeitos especiais, sua tecnologia 3D, e a viagem fantástica de Pi, talvez seu maior valor resida na articulação que o protagonista faz de sua “aventura” com sua história pessoal, ao revelar suas digressões, suas dúvidas, suas superações, as (boas) certezas de seu pai, a doçura de sua mãe ao incentivar sua busca de sentidos para a vida, sua relação mais fraternal que rival com o irmão mais velho. Sendo o único sobrevivente do cargueiro japonês, porém, ao aportar no México, sua história não parece verossímil aos ouvidos dos que investigam as causas do naufrágio. Pi constrói, assim, uma outra versão em que ao invés de animais, ele teria feito este trajeto no bote com mais quatro pessoas, que não teriam conseguido sobreviver. E diante do olhar hesitante do escritor e interlocutor deixa a ele a escolha de qual história relatar. Qual lhe parecia ser a mais interessante? Aquela em que são acrescidos sentidos para que a tragédia que assolara sua vida pudesse ser amenizada ou a realidade nua e crua, sem consolo ou feitos heroicos? O semblante do escritor se modifica. Seus olhos brilham, quem sabe por serem os escritores aqueles que escrevem as histórias que embalam nossa imaginação, que funcionam como fonte e espaço de nossos sonhos.

sexta-feira, 11 de janeiro de 2013

Excessos & confortos


Na Folha de São Paulo do dia 1º de janeiro de 2013 é possível ler uma resenha do livro "O Século do Conforto - Quando os parisienses descobriram o casual e criaram o lar moderno"- de Joan DeJean, editora Civilização, uma pesquisa sobre a invenção a partir da era moderna, de modos menos duros e mais confortáveis de viver, mais adequados às conversas e aos momentos de descanso, de diversão e principalmente de sedução. Entre os itens selecionados pela pesquisadora, está o sofá, que passa a permitir não só momentos de descanso e ócio, como uma maior proximidade/intimidade entre as pessoas, inclusive de diferentes sexos, o que facilitava a prática dos assédios amorosos, além das leituras ou das “fofocas”. Outro item mencionado seriam os banheiros que passavam a ter chuveiros com água corrente, acrescentando assim um plus de prazer a um ato inicialmente higiênico. Num jogo rápido, é como se pudéssemos conferir a escalada moderna em direção ao usufruto dos prazeres (mais mundanos?, mais eróticos? mais livres de protocolos?) algo que na atualidade nos parece de direito. Poucos contestariam o fato de ser hoje bastante “natural” para cada um a busca de satisfação, mesmo  nas desmesuras dos apetites ou na insaciabilidade dos desejos, incluindo aí a prática de uma certa antecipação (imaginária) do quanto poderemos nos lambuzar (de prazer) diante das milhares de possibilidades que criamos no mundo atual que contêm este tipo de promessa. Estão aí as propagandas criadas para que possamos degustar tal antecipação e que atestam o caráter ilimitado de nossas fantasias. Mas não deixa de ser interessante pensar que a pesquisa toma o “conforto” como ponto de partida para as várias invenções que hoje poderiam ser contabilizadas como a instituição progressiva do direito aos excessos, ou melhor, da assunção da falta de limites para o que podemos desejar. No entanto é inegável que a quebra sistemática de protocolos que continham regras específicas, mais rígidas e constrangedoras dos modos de se estar no mundo tenha como contraponto um novo “custo vida” para cada um. E ele nem sempre é muito transparente, ou simples. Sem muitas normas e referencias que nos orientem, cabe a cada um produzir os limites e fronteiras necessários não só ao convívio com os outros, mas conosco mesmos. Mais do que nunca somos “medidos” (até por nós mesmos, a famosa autoestima), mas agora muito mais pela competência com a qual conseguimos gerenciar nossos excessos e manter ao mesmo tempo nossos laços profissionais e amorosos, nosso corpo bem talhado, uma medida aceitável para nosso consumo de objetos, drogas, alimentos, isso tudo sem sucumbir a um “excessivo” sentimento de vazio ou de fracasso que nos conduza à depressão. Custos preciosos para tentarmos manter nosso “conforto”. Parece, portanto, que o “conforto” que no inicio da modernidade significava muito mais a produção de ferramentas e objetos que facilitassem ou tornassem mais prazerosa nossas vidas, deslocou-se para um conforto interno, psíquico, em que tentamos evitar a qualquer custo, um excesso de “mal estar”, que nos proteja de grandes deformações em nossa (auto) imagem, da solidão, do sentimento de desamparo, da falta de sentido de nossas vidas, da preocupação e aflição com o corpo ou com suas limitações (doença, envelhecimento, morte) para que possamos usufruir, sem culpa ou vergonha, dos “bons” excessos. Operação delicada, que no melhor dos casos produz nossos sintomas psíquicos, nossas tentativas de buscar um quantum de “conforto” ao preço de uma redução substancial do espectro ilimitado que uma vida pode oferecer.

quinta-feira, 3 de janeiro de 2013

À espreita de 2013


Dizem que as comemorações em torno da noite de Natal, cuja palavra guarda o significado de nascimento – que se desdobra em renascimento - ganhou na atualidade uma dimensão que ultrapassa sua tradição cristã, consolidando um clima antecipatório de confraternizações de final de ano, em que grupos os mais variados se reúnem festivamente no tom de expectativas para um novo ciclo. Parece, no entanto que a tensão criada em torno do dia 21 de dezembro de 2012, marcado como data do final dos tempos, teria adiado as trocas de mensagens e ensejos que costumeiramente abundam em e-mails ou redes sociais. Ou seja, o ano de 2013 estaria menos “antecipado” no imaginário de cada um, que por cautela não teria projetado, como sempre, um agendamento futuro de novos desejos e realizações não cumpridas. Além disso, 2013 termina com 13, número considerado por tradição agourento, acrescentando pontos ao clima de desconfiança reinante. A verdade é que não podemos descartar a importância dos ritos, tampouco as interferências que anunciam ruídos em seus esperados percursos. Nossa “rotina”, por exemplo, é um frequente alvo de nosso fastio e não são poucas as vezes em que desconjuramos seu aspecto repetitivo, sonhando com alternativas mais fantásticas. Mas basta estarmos afastados dela há algum tempo para que comecemos a contar os minutos que faltam para o retorno de seu “conforto”. Parece que precisamos acreditar que para além de todas os revezes e solavancos, há uma continuidade assegurada para nossas vidas em algum “lugar” do mundo. Mesmo assim, de tempos em tempos, o mundo parece exigir que mudemos nosso modo de pensa-lo. Um texto do Valor Econômico de alguns dias atrás trazia a história do surgimento das enciclopédias no século XVIII cujo objetivo seria o de reunir todo o conhecimento produzido até então para que pudesse ser melhor utilizado pelas futuras gerações. Um século que anunciava as Luzes ao pretender retirar a humanidade de suas superstições ou crenças obscuras e buscava meios para organizar os saberes e produzir assim novos modos de viver e se comportar. Passados mais de dois séculos, não só o volume do conhecimento acumulado é infinitamente maior, como o modo de apreensão deste é completamente diferente. Contamos hoje com uma moderníssima e infinita “enciclopédia” que funciona ao mesmo tempo como biblioteca, arquivo vivo, centro de dados, pode ser instantânea, simultânea, e sem hierarquias. Esperamos que nossos bebês possam ser super eficientes ao “realizar” a promessa de serem portadores deste saber e tal como uma “empresa” que se divide em múltiplos setores, avancem na possibilidade de fazer um bom uso desta fragmentação necessária, sem perder de vista o Todo. Já os idosos, aqueles que não se aquietaram como Niemeyer ou Dona Canô, só partem porque seus corpos já não podem acompanhar seu desejo de viver o futuro. De certa forma conseguimos produzir este acervo inominável ao alcance de quase todos. Mas o quesito mudança de comportamento derrapa inevitavelmente em nossas fragilidades. Estas que nos fazem temer que o mundo se acabe ou que simplesmente não continue como está. Por isso vale a pena desejar a todos nós um ótimo futuro em 2013.