Imagino que todos saibam ou imaginam o que significa
a maratona de exames anuais – muitas vezes semestrais - que temos que nos
submeter para checar nossa saúde quando nos aproximamos ou já mergulhamos na
“melhor idade”. Foi numa dessas manhãs que assisti pela primeira vez ao novo
programa matinal da apresentadora global Fátima Bernardes. Próximo ao dia 12 de
outubro, que antes de se tornar feriado nacional em homenagem a Nossa Senhora
da Aparecida era mais conhecido como o dia da criança, o programa celebrava a
infância. Para meu deleite lá estavam a dupla de compositores Sandra Peres e
Paulo Tatit, do “Palavra Cantada”, que há algumas décadas se debruçam sobre o
cancioneiro infantil nacional recuperando canções e compondo novas. Para abrir seu
programa, Fátima incitava seus convidados a cavoucar a memória atrás das
canções de sua infância e dentre estas (para os que já fossem pais) quais
teriam sido reproduzidas com seus filhos. Na toada destas lembranças algumas
jovens mães aproveitaram para questionar o conteúdo de certas canções infantis tradicionais
que ao invés de palavras de acalanto continham letras assustadoras, caso do boi
da cara preta, da cuca que vem pegar, do pau que foi atirado no gato ou do
cravo que brigou com a rosa deixando-a despedaçada. Qual seria o sentido delas?
Por quais razões o ato de ninar bebês ou de entretê-los viria acompanhado de palavras
que descreveriam ações tão assustadoras? Senti não ter acompanhado o debate que
se seguiu, mas me lembrei de imediato dos contos infantis povoados de bruxas,
lobo-maus e monstros. Quem tem filhos ou netos sabe o quanto as historias infantis
são instrumentos para o conhecimento do mundo tanto por enunciar os problemas
como por propor soluções. Elas em geral não funcionam como exemplos, mas como modos
de facilitar o acesso da criança à complexidade das relações e dos afetos dando
pistas para possíveis ações. Não por acaso fadas e bruxas com suas tramas
cruéis ou pacificadoras continuam a fazer sucesso. Um dos motivos é porque
revelam as dificuldades das relações familiares, em que filhos podem odiar
aqueles que mais amam e pais podem “devorar” suas crias. Além disso, as
historias admitem a existência de
sentimentos desagradáveis, mas inevitáveis como a raiva, a inveja ou os ciúmes
que, sempre mal vistos e condenados por atrapalharem as relações sociais, podem
ameaçar as crianças que se sentem inseguras com o amor de seus pais, que tem
medo de serem abandonadas, que se sentem culpadas por disputarem um lugar
especial e rivalizar com algum irmão ou em desejar ocupar o lugar da mãe com o
pai ou vice versa. Ao contrário do que se imagina, portanto, as “boas”
historias são as que permitem que as fantasias, os temores, os desejos
proibidos sejam vividos de forma simbólica e isso acontece sempre que as crianças
elegem alguma historia em especial que precisa ser contada por um bom tempo ou quando há pedidos de que sejam transformadas/ recriadas de acordo com suas necessidades,
para dar conta de seus conflitos, angustias e frustrações ou dar forma a
sentimentos confusos. Se a infância jamais alcançou tamanho foco na historia da
humanidade é porque mais do que nunca há um consenso de que neste período as
vivências são formadoras e constituintes. Isto convoca a todos que pretendem
exercer a paternidade ou a maternidade, escancarando suas incertezas e
inseguranças. Algumas canções antigas como as que invocam o boi da cara preta
ou a cuca provavelmente cantam o desamparo
dos pais diante da “infância” que seus filhos evocam neles.
segunda-feira, 29 de outubro de 2012
domingo, 21 de outubro de 2012
Canções de amor
Tenho a impressão de que assim como eu, algumas
pessoas podem experimentar a sensação de estar diante de alguma sacada genial,
algo de uma grandeza que os excede ou que “faça” muito sentido quando se deparam
com determinada imagem, certo trecho de música ou frases de alguma poesia/livro.
A dupla Chico Buarque e Edu Lobo, por exemplo, mestres na combinação de
melodias e letras que enchem a alma, compuseram uma canção (Choro Bandido),
cujos derradeiros versos parecem encerrar uma espécie de metáfora daquilo que
nós humanos convencionamos chamar de “amor”. Ao cantarem que “mesmo que os romances
sejam falsos como o nosso, são bonitas, não importa, são bonitas as canções; mesmo
sendo errados os amantes seus amores serão bons”, os dois compositores nos
lembram como a literatura, a música e o cinema conseguem se manter responsáveis
por este espaço (idealizado?) de apostas nos amores. Estamos, de fato, quase
sempre prontos a reverenciar as historias de amor sejam elas trágicas, loucas
ou felizes. E as razões não são tão obvias. Por quê? Uma jovem amiga contava
dia destes que poderia “matar” seu namorado depois que este, em uma viagem de
férias, havia postado em uma rede social uma foto em que estaria acompanhado de
uma linda moça. Enlouquecida, ligou para todas as amigas e imediatamente acionou
seu eficiente serviço de “pronto socorro dos feridos pela flechinha de Eros” em
que cada uma deveria dar seu pitaco sobre ocorrido. Durante algumas semanas
entrou em “alfa” e dominada por sua ira não só proclamava aos quatro cantos os
atos de tortura e vingança que seriam aplicados contra o agora “ex”, como anunciava
sem culpa ou remorso suas insuportáveis manias e defeitos. Corta-lo de toda ou
qualquer rede social tinha sido sua primeira ação. Ahhhh! Como ele tinha tido
coragem de fazer esta desfeita a ela? E ela, como tinha sido capaz de acreditar
em seu amor? Aquele verme? De dupla amorosa invejada eles passavam à lista dos
“falsos ou falidos amores”. Podemos tentar colocar as lentes mais próximas, analisar
os detalhes desta história, achar seus caminhos, descaminhos , razões, desrazões.
Minha amiguinha andava feliz com esta nova relação. Farta de investir em alguns
namorados, no passado, que cedo ou tarde a traíam e resolvida a não se ligar a
mais ninguém, tinha feito uma espécie de contrato “diferente” com aquele menino.
Havia sim sucumbido ao fato dele não se descolar dela nem por um segundo,
sempre a reivindicar um olhar, um sorriso, a elogiar sua beleza, a proclamar
seu amor, a declamar poesias ou a inventar letras no violão que cantassem sobre
o lugar especial que ele lhe dedicava. Reuniu as amigas e anunciou: elas seriam
testemunhas de que ali não havia namoro sério. Eles iriam se curtir enquanto
fosse bom e cada um deveria administrar sua liberdade por conta e risco. Mas ela
foi gostando, se acostumando a ser rainha e a viver junto a alguém sempre disposto
a adivinhar seus desejos ou antecipar suas vontades. As amigas eram convidadas
de vez em quando para provarem as novas receitas que ele inventava sempre
inspiradas nela. Quem poderia resistir? Mas ainda sob o impacto dos tremores do
passado, durona, ela insistia que esta fórmula do compromisso
“descompromissado” lhe traria menos expectativas e por decorrência menos
sofrimento. Quando as férias dele - já planejadas - chegaram, juntos
relembraram os votos iniciais de liberdade. Nas primeiras semanas
aproveitando-se do tempo que lhe sobrava, marcou cafés e jantares para
conversas, trocas e risadas com as melhores amigas que lhe rendeu um doce sabor
deste descompromisso. Apesar disso ele lhe telefonava com frequência tanto para
lhe dar noticias quanto para reiterar sua saudade. Foi atropelada pela foto.
Implacáveis, dor e sofrimento inundaram sua alma antes de cada célula de seu
corpo ser tomada pela raiva. Ele havia atravessado aquela fronteira proibida.
Depois de algumas (ou muitas?) semanas, o ódio cedia espaço para a tristeza e
ela repetia a si mesma que se iludira com a possibilidade de viver
desafetadamente aquela relação. O “amor” nem pedira licença para se deitar no
sofá de sua alma. Invadira. Restava-lhe um gosto amargo das antigas certezas e uma
história. Uma história que era também tão bonita, que poderia até recomeçar. Mas aí seria outra história.
quinta-feira, 11 de outubro de 2012
Voto com paixão
O sociólogo argentino Horácio González que fez seu
doutorado no Brasil nos anos 80 e agora dirige a Biblioteca Nacional da
Argentina se perguntava em entrevista concedida a Ilustríssima no ultimo
domingo porque um presidente como Getúlio Vargas, do qual se guarda até o
pijama com o buraco da bala que o matou, não se tornou no Brasil um ícone
popular da dimensão de Perón. Seriam os brasileiros menos apaixonados por
política do que os argentinos? Segundo ele os argentinos teriam uma relação
muito singular com as figuras de seu passado como Perón, Evita, Borges ou
Gardel, transformados em mitos e, portanto sempre vivos e presentes. Sem
conseguir formalizar um parecer definitivo sobre as diferenças entre as duas
culturas ponderou se a falta desta tradição aqui poderia ser favorável a uma
“felicidade” maior dos brasileiros, mas como um bom argentino sucumbiu à
importância dos polêmicos e constantes debates produzidos entre seus
conterrâneos que respiram e participam com suas entranhas da sua historia. Talvez
o panorama que se delineou no período pré-eleições para prefeito e vereadores da
maior e mais rica cidade do Brasil possa nos ajudar a pensar sobre este modo
mais “cool” de se comprometer com os rumos da politica do país, dos estados ou
das cidades. No dia seguinte às vitórias de Serra e Haddad como candidatos a
disputar o segundo turno destas eleições era possível ler vários textos -
alguns surpresos, outros orgulhosos, muitos tateando as causas da virada em
torno da candidatura Russomano, antes líder das pesquisas. O que teria
acontecido? O colunista da Folha de São Paulo Xico Sá chamava a atenção para o
facevoto. Segundo ele nas ultimas semanas as pessoas teriam aberto
escancaradamente seu voto no Facebook, postado suas convicções, discutido os
prós e contras uns e outros, compartilhado informações sobre a idoneidade de
alguns candidatos, as jogadas politicas, as ligações partidárias, as parcerias
duvidosas. Mas ao contrário do colunista, arrisco colocar o peso menos na rede
social – embora ela tenha sido um veiculo veloz não só de trocas, mas de
compartilhamentos e, portanto de uma abrangência inédita – e mais no fato mesmo
de que estes “brasileiros”, tal como nossos hermanos, teriam exposto suas
preferencias politicas de forma apaixonada, acendendo as luzes antes apagadas
pelo sentimento generalizado de descrença. Assim, a coragem de uns cutucava a
reticencia de outros. Lembrei-me de um debate entre empresários sobre certas
características especiais dos gestores brasileiros. Ao contrário de outras
culturas, nossos executivos teriam muito jogo de cintura para improvisar
situações que evitassem constrangimentos ou mal-estares e pareceriam mais a
vontade na manutenção a qualquer custo do clima de cordialidade e tolerância. Tudo
se passa como se ao excluir os conflitos, ao não se falar sobre as
discordâncias ou não se reclamar os direitos se instalaria um espaço menos
agressivo e mais tranquilo. Comportamentos reivindicativos ou falas mais
indignadas seriam comumente avaliados como ataques pessoais desnecessários. Nosso
estilo “cool” guardaria, portanto em sua origem, uma tentativa de evitar a
discórdia, o debate e as discussões tão ao estilo “caliente” de nossos
vizinhos. Mas ao preço de perdemos o engajamento e a responsabilidade que todos
precisam ter de concordar ou discordar dos valores, de muda-los se for o caso, de
se perguntar sobre qual tipo de sociedade deseja viver ou como acha que devam
ser as empresas ou os políticos.
domingo, 30 de setembro de 2012
O que será que será?
Para quem não
conhece, os filmes do diretor canadense David Cronenberg, embora cultuados,
dirigem-se àquela parcela que curte e está sempre ligada à sétima arte e seus
artistas (autores) singulares, já que em geral são bizarros e violentos
principalmente por privilegiar os aspectos mais “animalescos” da espécie
humana. Mas não era esta temática que ele anunciava no ultimo festival de
Cannes (maio/2012), quando apareceu para a mídia ao lado do super-queridinho, o
“bom e sedutor” vampiro Robert Pattinson da saga Crepúsculo, para falar de seu
novo filme “Cosmópolis” cuja estreia no Brasil aconteceu no inicio deste mês. Ainda
que considerado difícil e pesado pela crítica em geral, a estória pretende ser
uma sátira-filosófica da crise geral de nossos tempos. No papel de um jovem e bem
sucedido investidor da era digital, assiste-se ao personagem de RP passar um
dia dentro de sua arrojadíssima limusine equipada para ser seu escritório,
tentando chegar ao destino desejado, um barbeiro de infância com o qual quer
cortar seu cabelo. É neste trajeto que ele irá rever o sentido de sua vida ao
ser confrontado com situações inesperadas. Durante este percurso, cada
personagem dos muitos que entram e saem de seu “office-car” estará
representando e questionando uma fração significativa do modo de viver
contemporâneo. Embora o diretor tenha dito em várias entrevistas que seu filme
é sobre a esperança e que para se falar de esperança é necessário criticar duramente
os modelos falidos criados por nós, os personagens, o diálogo, a intensidade, o
humor acabam por produzir um certo mal estar, um tom excessivo. Na semana
passada, em sua coluna semanal da Folha de SP, Vladimir Safatle parecia
surpreso diante da resposta de sua filha de 12 anos a uma pergunta sua sobre
como ela supunha ser o mundo em 2030. Imaginando que uma criança pudesse ter
uma visão de um mundo que poderia ser moldado segundo seu desejo, a filha, ao
contrário, apontava um futuro em que as cidades precisariam controlar as
pessoas, as pessoas seriam obesas e os celulares funcionariam com hologramas,
um espectro nem tão positivo. De certa maneira Safatle conclui como Cronenberg,
que em momentos como estes, em que parece que vivemos uma grande crise, um certo
caos e a falta de futuros à vista a anunciar o fim de uma era da sociedade como
a conhecemos, há mais a criticar do que a sonhar. Por isso é mais cauteloso com
a esperança, ao concluir que em um primeiro momento ela é recusada (como sua
filha mostrou) para então retornar quando certas portas e saídas se abrem. Nesta
semana entrou em São Paulo Tropicália, um documentário que apresenta um recorte
da arte e da cultura do Brasil entre os anos 1967 e 1972, quando Caetano e Gil retornam
de seu exilio em Londres. A década de 60 é lembrada pela historia ocidental
como aquela em que os jovens de vários países quebraram inúmeros tabus e
reivindicaram a liberdade de pensar, de agir, de amar, de cantar e de mudar
muitas das falidas convenções. Embora o Brasil neste período tenha sido
assolado pela censura cada vez mais dura da ditadura militar, o movimento
tropicalista foi um aglutinador da cultura da época ao criar um tempero que
incluía da música dos Beatles aos Mutantes e à Jovem Guarda, da banda de Pífaros
de Caruaru aos sons afrobaianos, da bossa nova ao samba, do teatro de Zé Celso
Martinez ao cinema novo de Glauber, além
da arte inovadora de Oiticica. Era um Brasil que buscava alguma identidade, uma
cara nova. No final do documentário, as imagens da festa que recepcionava os
baianos recém-chegados do exilio também aparecem sendo assistida pelos dois setentões,
Gil e Caetano, emocionados, olhos marejados, como a conferir no pós- tempo, os
resultados das intuições vividas na época sem que eles o soubessem. Demasiadamente
humanos, os artistas (e os jovens) de todas as épocas costumam antecipar
caminhos que eles mesmos desconhecem, ainda. Talvez porque o espírito da época
não nos pertença, nós é que pertencemos a ele.
quarta-feira, 26 de setembro de 2012
Mundo em (R)evolução?
Estávamos em um grupo que
conversava sobre o evento, minutos antes que o palestrante entrasse para a sua
conferencia. Físico bastante conhecido por divulgar suas ideias na mídia,
perguntei-lhe porque alguns de seus colegas deixavam a profissão e tornavam-se uma
espécie de pensadores a questionar o mundo e seus rumos. Com um sorriso irônico
comentou que, ao longo de suas carreiras muitos físicos transformavam-se em
filósofos medíocres. Não era o seu caso, pensei. E de certa maneira sua
palestra respondia minha questão. Para encerrar o FDC Experience, um evento que
pretendia mesclar arte, história e cultura e discutir as inter-relações entre
gestão e brasilidade com o intuito de refletir sobre modelos futuros de gestão,
ele havia escolhido falar sobre a importância da consciência de nossa
insignificância. Apresentando-nos o universo espacial com suas milhares de
galáxias e a nossa (Via Láctea) a qual pertence a Terra, o Sol e a Lua - tão
reverenciados pelos inúmeros mitos de nossas origens- fomos sendo submetidos a
esta nua e crua realidade. Graças ao acaso circunstancial da localização
precisa entre o planeta Terra e sua “boa” estrela, o Sol, teria sido possível
haver vida (e continuar havendo), ao podermos desfrutar de luz, de agua, de ar
(oxigênio). O universo galáctico teria suas próprias leis de funcionamento,
incontáveis estrelas que nascem vivem e morrem, muitas galáxias em formato de
espiral cujo “ralo” seria um buraco negro “aspirador” e a ciência – leia-se
todo o conhecimento produzido por nós, humanos
- não desistiria de vasculhar
sinais de vida inteligente (ainda não encontrados) ou indícios do tempo de vida
restante de nosso planeta que depende de seu sol. No cálculo aproximado da
formação deste imenso universo, a vida seria recente, mas decididamente não somos
e nunca fomos o centro do universo. E se na foto de uma galáxia mal delineamos
os pontinhos que comprovam a existência das estrelas e dos planetas, fica claro
que não estamos nela. Não. O propósito estava longe de ser apocalíptico. Era
sim um convite a reflexão, ao papel – a responsabilidade - que cada um teria
sobre sua vida e a dos outros do planeta. Um convite a repensar os rumos de um
mundo que nos pertence. Para uma plateia composta principalmente por gestores e
empreendedores cujo futuro precisa estar planejado e os resultados necessitam
acontecer em curto prazo, nada mais angustiante, ainda mais quando imersos em
um sistema que premia a competividade, modelo pouco produtivo para um trabalho
conjunto. E se a nossa foto de consumidores - comendo, bebendo, comprando,
acumulando e trocando - já começa a apresentar sinais de um amarelo envelhecido,
o futuro anuncia a importância do “ser humano”. Um ser humano que urge tomar
para si as rédeas de sua vida sem se esquecer de que há outros ao seu redor.
Que precisa inventar uma vida que não gire somente em volta de si ou da
família, mas inclua a comunidade, o coletivo. Palavras fortes, comoventes até,
mas distantes desta realidade e difíceis de serem administradas, pois portam o
desafio da convivência com a diferença - racial, étnica, religiosa ou econômica
– e impõem pensar um modo pelo qual pessoas diferentes umas das outras se
relacionariam nas cidades e nas empresas, garantindo sua qualidade de vida em
um modelo de cooperação. Otimista demais? Como lidar com o fato de se precisar
de pessoas com as quais não se está conectado intimamente, as quais não se
conhece bem ou não se goste? Quais as chances de nos tornarmos um “ser humano” mais
preparado para esta vida adulta e complexa em que a confiança, algo intangível
seria o combustível da vez? Questões que não só os físicos e os gestores se
ocupam hoje, mas que parecem convocar todas as disciplinas a ultrapassarem suas
fronteiras para pensarem o futuro deste “ser humano”.
segunda-feira, 17 de setembro de 2012
Acreditar em que(m)?
Próximos a mais uma eleição para prefeitos e vereadores, propagandas eleitorais correndo soltas, parece que paira uma certa apatia generalizada na população. É possível que a falta de confiança nos candidatos (sejam eles de que partido forem), imprescindível para que haja possibilidade de esperança de mudanças, esteja ligada a constatação geral de que nossos políticos reduziram drasticamente seu compromisso com algum futuro das cidades, ou do país e passam seus dias atrás de acordos e conchavos que garantam as benesses de suas carreiras, as vantagens pessoais e as ligações importantes com o poder e o dinheiro. É desolador imaginar que a maioria dos discursos é vazio, meras propagandas enganosas, sem qualquer comprometimento real com o futuro. E quando a suspeita de se estar sendo enganado ou ludibriado se mantém por um longo tempo não só os candidatos perdem, mas o sistema como um todo. Um funcionamento corrupto mina a confiança nas instituições e no Estado, cria um clima de desconfiança e descrença, dissemina insegurança e sentimento de impotência. A pergunta intrigante fica por conta de um certo “deixa estar” característico de um modo “brasileiro” de ser e viver. No ultimo domingo, 9 de setembro, o caderno Aliás do Estadão trazia uma reportagem sobre a Comissão da Verdade recém nomeada para investigar os “porões” da ditadura militar, ocasião em que muitos desapareceram deixando suas famílias a deriva, sem noticias sobre suas mortes, seus corpos. O texto cobrava uma maior abertura de suas reuniões, com ampla divulgação dos depoimentos dos familiares de desaparecidos políticos, muitos feitos pela terceira geração, com sobrinhos ou netos. Como a Comissão da Verdade não foi criada para fazer justiça ou punir, não haveria sentido não expor à sociedade as atrocidades cometidas no passado recente do país. Afinal porque não investir na verdade como ferramenta de conscientização, como elaboração da nossa história, como construção de nossa memória histórica? A pergunta aflita do autor escondia seu temor de que tudo não passasse de mais um protocolo, sem chances de produzir algum debate publico ou algum impacto social sobre tal passado vexatório. Seu comentário não passou batido porque, recém-chegada de Berlim, pude constatar como, ao contrário de tanto sigilo, a Alemanha se decidiu por uma espécie de aprendizado moral e cultural que surpreende a todos que a visitam, ao manter um museu a céu aberto, em que todos, turistas e moradores respiram história, uma história em grande parte vergonhosa, da qual ninguém se orgulharia. Só para lembrar, em 1945 ainda não havia na era moderna um país que caíra mais fundo do que a Alemanha: sua soberania foi extinta, sua infraestrutura esmagada, sua economia paralisada, suas cidades reduzidas a entulho, a maioria da população estava faminta e desabrigada, havia sobreviventes em campos de prisioneiros de guerra e todo o país estava ocupado por exércitos estrangeiros. Nos anos seguintes os alemães queriam esquecer, deixar para trás o racismo, o imperialismo, o ódio, a artificialidade da superioridade pregada pela ideologia nazista. Aquilo nunca mais deveria se repetir. Ao final da Segunda Guerra Mundial (1945) com o país dividido em quatro zonas comandadas por soviéticos, franceses, britânicos e norte-americanos, vencedores da guerra, o intuito era apagar as marcas do nazismo e empreender um processo de reconstrução. Mas a União Soviética na pessoa de seu líder Stalin se recusou a participar do programa de recuperação, temendo por em risco a hegemonia de Moscou no leste europeu. Assim, com acordos diplomáticos, em 1949 a Alemanha racha em duas: República Federal da Alemanha e República Democrática Alemã. Em 1961, decididos a conter o fluxo de refugiados, os comunistas erguem o Muro de Berlim, separando amigos, famílias e uma nação até 1989. Hoje, a 22 anos da reunificação, Berlim é uma cidade que não teme seu passado e parece estar sempre aberta ao futuro, ao fluxo de pessoas e culturas. Sua população tem em que(m) acreditar.
Um certo (e modesto) olhar
Documenta de Kassel? Já tinha ouvido falar sobre
esta exposição de arte contemporânea que acontece a cada cinco anos na Alemanha
e me empolguei com a ideia ir até lá conferir sua fama. Depois de uma semana de
mergulho na cultura berlinense nada parecia mais apropriado, inclusive pela oportunidade
de viajar pelos moderníssimos trens alemães. Cidade de uns 200 mil habitantes,
Kassel recebe a todos que chegam a sua estação para a Documenta com um tapete
vermelho. Um jeito simpático e de certa maneira despojado de anunciar a
importância deste período de cem dias em que a cidade é sede desta respeitada mostra.
Também um jeito de avisar os desavisados (meu caso) que se está diante de um
evento muito maior do que se imagina. Em sua 13ª edição, a primeira foi idealizada
em 1955 por Arnold Bode, professor de arte e design que, diante de uma Alemanha
pós-guerra devastada (também) culturalmente pela ditadura nazista, pretendia
abrir um amplo debate sobre as artes, preservar as tendências e reposicionar a
Alemanha no circuito internacional cultural. Quando se é um visitante do país
na atualidade, não é difícil se deparar com este espírito de reconstrução não
só geográfica, política ou cultural, mas moral. Há um grande empenho não mais
em romper com a herança sombria do passado, mas em repara-la continuamente. O
primeiro olhar de quem desce na estação central da cidade fica capturado pelo
“colorido” formado pelas pessoas. São muitos os que fazem parte do mundo das
artes e se organizam para estar em algum momento na cidade. E quando se tem
apenas dois dias um planejamento dos espaços e artistas a serem visitados é
mais do que necessário. De cara somos imersos em um mundo habitado por pessoas
que pensam a arte atual como uma forma de surpreender, de trazer novos sentidos
ao que já se conhece. De apresentar nosso mundo arte-cultural como um enorme
espaço sem fronteiras, mesmo quando são apresentadas suas diferenças e marcas. Uma
arte engajada, que quer pensar o futuro da vida humana por meio de todos os
debates possíveis, em relação à natureza, as novas formas de política, a
sustentabilidade ou ainda nas formas de sobrevivências econômicas, éticas e emocionais.
Arte em movimento, sempre a absorver os novos conhecimentos, a se renovar. Para
a curadora desta edição, a escritora ítalo-americana Carolyn
Christov-Bakargiev, uma arte que não é feita apenas por artistas, mas que inclui
historiadores, filósofos, físicos, ativistas ambientais, todos convidados a
refletir sobre as incertezas e os riscos que nos rondam, sobre a situação do
mundo atual. Por isso seu time foi composto por gestores provenientes das áreas
de artes, filosofia, biologia, física, antropologia, política, arquitetura e economia,
e as obras de 150 artistas de 55 países, escolhidas sem que o critério fosse necessariamente
fazer parte das estrelas do cenário contemporâneo. Utilizando, além dos museus
e o parque, um grande e eclético numero de espaços espalhados pela cidade para
as obras - a nova e a velha estação de trem, hotéis, bunker, campo de
concentração, um hospital desativado - o panorama geral estava mais para o
sensível e significativo do que para o espetacular e majestoso. Talvez o
exemplo mais interessante desta caracterização seja os dois trabalhos da dupla
canadense Janet Cardiff e George Miller.
Em um deles, talvez o mais genial, cada visitante deveria seguir o monitor de um
Ipod em uma visita guiada pela voz da artista na movimentada estação de trem,
percorrendo o mesmo percurso que ela fez no dia da gravação do vídeo,
surpreendendo-se com as intervenções de bandas, bailarinas, vozes, sons de pelotões
nazistas, silêncios ou ainda interrupções artificiais. É inevitável que o passado
e o presente, o real e o virtual se entrelacem. A mesma dupla assina outro
emocionante “sound art”, com caixas instaladas entre as árvores do Karlsaue
Park ( o majestoso parque da cidade) que recriam os bombardeios da segunda
guerra mundial, o transporte de judeus aos campos de concentração e termina com
vozes maravilhosas de um coral. Belíssimo!
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