Poucos anos atrás uma amiga querida telefonou-me
para contar emocionada que sua filha mais velha estava grávida. Uma mistura de
sentimentos a invadia e ela ansiava por uma conversa longa na expectativa de
que alguma organização deste tumulto pudesse acalma-la. Aceitei prontamente o
desafio, antecipando certo prazer nesta troca que, a meu ver, poderia se tornar
fecunda para ambas. Estava longe de imaginar como a gestação de sua condição de
avó seria construída passo por passo com idas e vindas em um misto de aflição e
prazer, mas principalmente em um reviver nada tranquilo de sua própria
gravidez. Muitas estórias depois, começou a despontar o espaço novo em que a
futura neta iria habitar. Que avó ela queria ser para aquela menininha? Que
valores ou afetos ela haveria de privilegiar na tarefa de transmissão a que ela
estava se propondo? Mais uma rodada de lembranças foi acionada na tentativa de
situar sua mãe, falecida já há algum tempo, naquela condição de avó. Alguém que
felizmente havia estado muito presente e teria contribuído bastante para que os
primeiros cuidados com sua bebê - que agora gestava sua netinha - pudessem
parecer-lhe menos assustadores. Foram nove meses intensos em que pude
compartilhar com minha amiga uma mudança de peso na sua vida, primeiro na
interior, e depois na cuidadosa disposição do tempo para os afazeres de sua
rotina, abrindo espaços que seriam preenchidos por seu convívio com Alice, a
netinha. O zelo e a responsabilidade com que ela tratara seu novo status me tocaram.
Sem nunca se questionar, ela havia “trabalhado” de forma incansável, tentando
não se esquecer de nenhuma letra do alfabeto. Tanto empenho me levava a
refletir sobre as características de “tonar-se avó” e como esta função estaria
diferente nos tempos de hoje. Não é difícil detectar um lugar comum que habita
o imaginário de ser avó e classifica esta condição como algo “finalmente”
prazeroso, já que ao contrário da maternidade com suas responsabilidades
extremas, as avós podem deitar e rolar com seus netinhos sem se preocupar com
as obrigações educacionais e seus limites, em geral cansativos por demandarem
exaustivas intervenções. É possível que a figura da avó complacente das
famílias de gerações mais antigas cumprisse mais este papel de assegurar um
pouquinho de liberdade ilimitada- aqui
você é rei/ rainha- para fazer um contraponto diante das inúmeras obrigações
que os pais precisavam impor aos pimpolhos. Por outro lado o “tornar-se mãe ou
pai” atualmente está longe daqueles tempos em que tal função era praticamente
naturalizada, ou seja, de pai para filho, de mãe para filha e assim
sucessivamente. Muitas e novas variáveis passaram a contar, desde as mudanças
nos papéis da mulher, que pode fazer inúmeras opções em sua vida, inclusive a
de não se casar ou ter filhos, até na configuração das novas famílias, que em
muitos casos agregam filhos, pais e avós de outros relacionamentos. No caso das
avós, uma grande parte trabalha, tem vidas com agendas cheias e nem sempre
estão dispostas, como minha amiga, a abrirem uma picada nova na paisagem
construída durante anos. Mas é verdade que a relação entre os avós e seus netos
pode ser muito prazerosa. Sem muitos modelos prévios, no entanto, parece que
cada um pode construir sua condição de avô ou avó, incrementando-os com seus
desejos. A amiga citada acima planejou com cuidado sua nova função, tomando-a
como uma passagem a qual ela deveria e queria se preparar. Outra, cujo humor
fino a caracteriza, avó de três netos, em resposta a minha pergunta sobre como
tinha sido para ela “tornar-se avó” respondeu prontamente: há um antes e um
depois. Em seu rosto nenhum sinal de que a frase pudesse habitar somente um dos
lados entre o prazer e o fardo.
quinta-feira, 21 de novembro de 2013
Liberdade, igualdade, fraternidade?
Há pouco mais de 200 anos, a França era palco de uma
das revoluções mais importantes, marco da era moderna. Ali, o povo se rebelava
contra a tradição e a hierarquia de monarcas e aristocratas, além da então
corrupta e poderosa Igreja Católica. Claro que a realeza, tomada de susto, se
organizou e durante algumas décadas lutou para restaurar a monarquia, o que
veio a acontecer com a era Bonaparte, mas estava cravado na história do
ocidente e no coração das pessoas, a esperança de um mundo em que fosse
possível a soberania do povo, o exercício da autoridade regido por leis
promulgadas por assembleias eleitas, a supressão de privilégios antes
instituídos, etc. As grandes guerras mundiais justificavam-se pela busca deste
mundo mais justo. No ultimo século, as ideias em torno desta “esperança”
movimentaram-se bastante. Se conquistamos direitos antes inimagináveis, graças
a todos os que militaram incansavelmente por isso, se elegemos a democracia
como um modo de convivência que mais se aproximava de um quantum igualitário de
liberdade, aquela “esperança” parece que foi aos poucos se deslocando. Ao invés
dela, hoje se busca mais a confiança. A maioria dos países que em tempos
passados viveram sob a égide de algum regime totalitário tenta encontrar um
eixo democrático e sustentar os direitos de seus cidadãos. O Brasil é um deles.
No entanto, o que se percebe, é que na época atual a cultura de cada país, ou
seja, como a rede de relações se estabelece se rompe ou se articula entre as
várias camadas sociais e políticas assume um lugar de muita importância na
estética democrática. Nossa famosa cordialidade, por exemplo, esconde uma rede
de relações privadas que comanda a cena pública do país e reivindica eternamente
ou um amparo ou uma brecha da lei para manter seus privilégios. Como nunca
tivemos um Estado que bancasse o desmame, à medida que se amplia o acesso de
classes menos favorecidas para repartir o bolo, aumenta-se o número de pessoas
que perseguem um lugar especial, ao sol, conquistado graças aos conchavos
decididos às escuras ou nos cochichos. Ao que parece este cenário de bastidores
se mantém a revelia dos partidos a esquerda ou a direita que assumem o comando
da proa. Assim, os “direitos” se tornam privados e cada um reivindica à sua
maneira, seus interesses particulares. Se o mundo se divide entre malandros e
otários, ninguém quer ser o segundo. Não temos uma bagagem de compartilhamento
do que é público e, portanto do que pertence a todos da mesma maneira. Ao invés
disso, reclamamos de tudo e todos sempre, vítimas que seríamos deste Estado
injusto, que não responde à altura da fome de cada um. Nas
últimas semanas, canais de televisões mexicanas veicularam um comercial que “bombou”
nas redes e gerou polêmica. Com atores infantis vestidos de adultos e vivendo o
cotidiano destes adultos, um estranhamento vai tomando conta de quem assiste,
como se, a despeito de todas as reverencias que se faz à infância e ao seu
lugar de privilegio na confecção do futuro do mundo, quando nos tornamos
adultos, entramos na roda viva que circula em torno dos interesses mais básicos
e primitivos: muito dinheiro, sombra ou sol (a depender do gosto) e agua
fresca. A noção do que é político, que é o dever de cada um em gestar qualquer
dimensão do que pertence a todos por igual, fica nos livros deixados nas
gavetas ou nos ideais esquecidos da juventude. O vídeo termina com uma criança
repetindo que se este é o futuro que a espera, não, não, ela não o quer. Como
se antes mesmo de se tornar um jovem capaz de sonhar e apostar em algum mundo
melhor, um trabalho de cada geração, estas crianças estivessem alertando-nos
para que não descuidemos do cimento de qualquer porvir: a confiança.
domingo, 13 de outubro de 2013
Governantes e governados
Na Ilustríssima de 4 de agosto de 2013 é possível ler
a resenha de um livro escrito pelo jornalista Mark Leibovich
- correspondente
da revista semanal do "New York Times"- lançado no
USA para “causar”, principalmente entre aqueles (incluídos aí seus próprios
colegas de profissão) que gravitam na “corte” (Washington D.C.), independente
de quem habite a Casa Branca. Com o sugestivo título “Esta cidade – duas festas
e um funeral” o livro é uma radiografia dos bastidores das relações promíscuas
entre políticos, lobistas e jornalistas, sem deixar de mencionar a passagem de alguns
de uma para outra destas funções, assim que se veem mordidos pela possibilidade
de “venderem” informações ou representar anseios de grandes corporações que
possam gerar investimentos, ganhos extras e/ou privilégios. Ficamos sabendo
p.e., que atualmente 50% dos
ex-senadores e 42% dos ex-deputados americanos tornam-se lobistas. O
lobby, como se sabe, tem sido uma prática comum em alguns estados democráticos de
buscar acesso aos políticos para que estes saibam das demandas de determinados
segmentos da sociedade, usando pessoas (lobistas) e seus canais de contato
junto aos órgãos de governo. Mas de uma participação que poderia ser saudável no
processo de negociação política transformou-se em uma extrapolação da persuasão,
sempre em favor de interesses particulares. Da “influencia” para o assédio
ostensivo e à corrupção, um pulo. Mas para além destas distorções que também para
nós brasileiros não se constituem novidades, o livro escancara um mundo à
parte, em que a Lei pode e deve ser esquecida e todos são convidados a se
despirem de seus idealismos, crenças e valores éticos para desfrutar sem culpa
de um mundo de privilégios. Cria-se assim uma espécie de Olimpo em que todos se
corrompem sem constrangimentos, ao priorizar apenas seus interesses de poder,
prestígio e dinheiro. No final da resenha seu autor descreve uma situação imaginária
em que o jornalista/escritor levaria uma surra de algum de seus mencionados, por
ousar “trair” este mundinho à parte, cujas festas e jantares ele mesmo teria
participado. Duas imagens me vieram à mente. Na leva de textos escritos
pós-passeatas de junho, em algum deles o eterno PMDB foi descrito com este tipo
de funcionamento à parte. Dirigido por um grupo oligárquico de indivíduos que
se consideram donos e permanecem na liderança por décadas, eles não só
controlam as finanças, as alianças e os candidatos, como se colocam estrategicamente
alinhados ao governo, seja este de que partido for, mantendo assim uma espécie
de blindagem que lhes permite barganhar desde cargos privilegiados até votações
importantes. Sem programas, tudo gira em torno dos interesses de seus
dirigentes. Sem um comprometimento ético, favorecem a legislação em causa
própria. Tal como uma “corte” o partido mantém seus “aristocratas” insaciáveis
por honrarias e benefícios que se regozijam em perpetuar a separação entre os
que têm poder e os comuns. É nesta lógica, ou melhor, nesta rede deturpada que
se produz uma cena intrigante. Uma notícia recente na mídia divulgava que a
Rússia finalmente teria concedido um asilo temporário ao técnico de informática
Edward Snowden - responsável por revelar o esquema de espionagem de telefones e
internet feita pelos Estados Unidos- após este ter permanecido mais de um mês
no aeroporto de Sheremetyevo em Moscou. O fato dos Estados Unidos ter pedido sua
extradição por roubo de dados sigilosos e espionagem bastou para que nenhum
país se dispusesse a acolhê-lo. Semanas atrás ele teria feito a seguinte
declaração à imprensa internacional: “Há um mês, eu tinha uma família, uma casa
no paraíso. Também tinha a capacidade de, sem nenhuma permissão, vasculhar, ler
e apreender suas comunicações. A comunicação de qualquer um, a qualquer hora.
Esse é o poder de mudar o destino das pessoas”. Na era do máximo de liberdade,
é bom que se lembre.
O tempo de Alice
Mais rápido, mais rápido, mais rápido – o título de
uma reportagem do dia 23 de agosto de 2013 no Valor Econômico,
trouxe-me à lembrança o Sr. Coelho, famoso personagem do livro “Alice no
país das maravilhas”, que aparece exibindo seu relógio e dizendo “Estou
atrasado, estou atrasado, estou atrasado”. É ele que passa apressado e atrasado,
instigando Alice a segui-lo, o que faz com que ela inicie a jornada que a
levará a um outro tempo. Mas que tempo? No texto do Valor Econômico , o
sociólogo alemão Hartmut Rosa afirma que vivemos na atualidade uma doença do tempo em que paradoxalmente o
excesso de atividades anulou os ganhos que a tecnologia traria ao tempo de cada
um, o que estaria produzindo estresse, ansiedade e insônia. Ficamos sabendo que
por milênios, as civilizações não se importavam em medir o tempo o tempo todo,
mas entre os séculos XVIII e XIX, as máquinas e fábricas, os trens e cabos telegráficos
lançaram um ritmo de vida com relógios, horários e pressa. Ainda que na época
tais mudanças embutissem a promessa de uma era de razão em que a felicidade, a
prosperidade e a liberdade deveriam ser para todos, quanto mais a tecnologia
economizava tempo, mais ocupados fomos ficando. Claro que a partir dos anos 70 a
revolução dos computadores elevou isso a uma potencia máxima, afetando nossa
percepção do tempo. Um estudo aponta que hoje, para um jovem de 22 anos, a
percepção do tempo é 8% mais rápida do que para alguém da mesma idade um século
atrás. A
Alice de Lewis Carroll despertou ao longo de sua existência várias reflexões em
que diferentes dimensões do tempo poderiam ser ressaltadas. Por exemplo, à
época em que foi escrita, no final do século XVIII, quando os livros infantis pretendiam
moralizar as vidas dos pequenos, Carroll ousou ridicularizar tais bons
comportamentos ao descrever um imaginário infantil que construía “teorias
próprias” para entender as esquisitices do pensamento e do comportamento dos
adultos. Se naquele contexto a historia funcionava como uma crítica ao seu
tempo (época) é verdade que a obra transcendeu o autor, permanecendo atual ao
possibilitar outras leituras. Em 2010, por exemplo, foi a vez de o
personalíssimo diretor Tim Burton lançar sua versão de Alice. O filme começa
com a jovem no casamento de sua irmã, às voltas com o seu mal estar diante do que
havia sonhado para si e o que era acenado como o futuro esperado (e cometido)
pelos adultos que a rodeavam. Suas irmãs gêmeas nadavam escondidas da mãe no
lago, aquela que se casava não lhe escondia sua vida sexual secreta, a tia
solteira tinha certeza que a qualquer momento e lugar encontraria seu príncipe
e para sua mãe não havia chances de Alice recusar ali o pedido de casamento feito
por um eterno admirador, que ela não admirava nenhum pouco. Socorro! Ela
precisava de um “tempo”. Assim se inicia a historia da busca de Alice –
atrasada, apressada- para encontrar (entender quem é, o que quer, como quer,
etc) um sentido para sua vida. Um outro tempo, subjetivo, em que ela deverá
mergulhar em sua historia para resgatar ou construir seu desejo e seus ideais, encontrar
alguma coragem para explicar suas escolhas e enfrentar o ônus desta
responsabilidade. Um tempo para a realidade interna que pode vir a modificar a
percepção do tempo da realidade externa.
A humanidade do mal
No dia 04 de julho de 2013 o programa Milênio do
canal Globo News exibiu uma entrevista com o autor do livro “O Leitor” - o
jurista e escritor Bernhard Schlink - em
que este declarava que ser alemão tinha um peso à parte, referindo-se ao fato
de seu país ter que conviver com um dos maiores crimes cometidos contra a
humanidade durante a segunda guerra mundial. Uma carga especial, uma culpa
específica, da qual ninguém poderia escapar. Mas também revelava que, embora as
novas gerações soubessem dessa dívida, o que era muito bom, a sensação de culpa
tendia a diminuir, mas a responsabilidade não poderia jamais. O livro foi
escrito nos anos 90 sobre os anos 50, 60 quando na Alemanha ainda aconteciam
julgamentos de alemães que haviam servido o regime nazista. Em 2008 o livro
ganhou versão para o cinema, com direito ao Oscar de melhor atriz para Kate
Winslet. Muito bonito, o filme conta a história de Michael Berg, um garoto de
15 anos que conhece casualmente Hanna Schmitz, uns 20 anos mais velha, por quem
se apaixona e com quem vive intensamente suas primeiras experiências sexuais.
Sem revelar muito sobre si, Hanna, que não sabe ler e sente muita vergonha disso,
vive momentos de felicidade com o ritual das leituras dos clássicos de
literatura que o rapaz faz em seus encontros eróticos. Mas de forma misteriosa
desaparece sem deixar vestígios. Anos mais tarde, já como estudante de direito,
ao comparecer com seu professor e colegas para assistir a um julgamento de
criminosos do regime nazista, Michael reconhece Hanna no banco dos réus. Para
uma Alemanha pós-guerra, está ali contemplado muitos dos conflitos vividos pelas
gerações mais novas que questionavam incessantemente os pais/familiares pela
colaboração ou omissão diante das atrocidades cometidas pelo Terceiro Reich.
Lembrei-me desta Hanna ao assistir recentemente o filme sobre outra, a filósofa
judia "Hannah Arendt", em que se relata sua decisão de presenciar o
julgamento de Adolf Eichmann em Israel, em1960 (um dos últimos líderes nazistas
vivos então), com o compromisso de escrever cinco artigos para a revista New
Yorker, que viriam a dar origem ao livro "Eichmann em Jerusalém – um
relato sobre a banalidade do mal". Aproveitando algumas imagens reais
deste julgamento o filme privilegia as expressões /reflexões da surpresa de
Hannah diante de um Eichman que para ela teria praticado uma "normalidade
burocrática", por ser incapaz de pensar/avaliar o mal de suas ações. São
estes os sentimentos - ambivalentes, duros, difíceis- que o estudante de
direito Michael vive no julgamento de “sua” Hanna. Imaginando poder ganhar mais
como funcionária nazista, ela teria aceitado a troca oferecida para sair da
Siemens, onde trabalhava. Seu sonho? Aprender a ler e a escrever. Ao ser
questionada pelo júri sobre seus atos durante este período, demonstra não
perceber a implicação das ordens a que se submetera como guarda de prisioneiros
judeus, todos mortos. Seu pecado? Escolhia algumas mulheres que pudessem ler
livros para ela. Suas colegas, todas rés e sob as mesmas acusações se
aproveitam de seu alheamento, deixando para ela o fardo da culpa de todas. Uma
cumpridora de regras, diria Hannah Arendt. Perplexo e paralisado, Michael
assiste ao julgamento em meio às lembranças de “daquela” Hanna, a sua. Tenso, não
pode revelar este passado singelo e “vergonhoso” aos pares, mas “sabe” que
precisa abater da culpa de Hanna, sua alienação. A banalidade do mal seria essa “desistência”
ou impossibilidade de pensar sobre o que se é e, portanto preferir ou deixar-se
colonizar pelo desejo de um outro. Esta seria a matriz do alheamento em relação
a si e paradoxalmente da crueldade para com o próximo. Para muitos, uma forma
de se proteger do “inferno”, ou melhor, dos custos de se viver.
Para conferir:
Somos tão jovens
Dias atrás, uma notícia na mídia que divulgava a
nova orientação para psicólogos americanos sobre a extensão da adolescência até
os 25 anos, ao invés dos 18 anos, abria um debate sobre a infantilização dos
jovens, levando em conta especialmente o alongamento do período de sua
permanência na casa dos pais. Não é dificil confirmar estes dados
estatisticamente e é provavel que a tal mudança de diretriz estivesse
« atualizando », ou melhor, ajustando as políticas públicas para
garantir por um período maior uma assistencia diferenciada aos jovens no campo
educacional, social, médico e jurídico. Como sempre acontece, as leis precisam
contemplar as mudanças da cultura, que nas últimas décadas alteraram e muito o
vetor de nossas crenças e parâmetros. Mas imaginar que os jovens já não aspirem
mais tornar-se independentes pode ser uma ideia reducionista quando analisamos
quão « jovem » é a estética do mundo contemporâneo. Se os oráculos de
Delfos significavam para os gregos antigos um recurso (sagrado) para a obtenção
de respostas sobre problemas cotidianos, questões de guerra, vida sentimental,
previsões de tempo, etc, hoje para decifrar o futuro a mídia fareja as novidades
sem fim que surgem do mundo jovem. A máxima de que o que importa para os jovens
é o presente estendeu-se para todos. O mundo atual nos convida a viver o mais que
pudermos, a desfrutar de tudo o que conseguirmos, a buscar prazer no que fazemos, a sermos feliz, etc. Seguindo
esta lógica, desde o instante em que nascem desejamos que nossos filhos sejam
lindos, inteligentes, carismáticos, felizes, competentes, amados, magros. E o
que querem os jovens hoje? Entre outras coisas buscam aflitos uma maneira de
cumprir tantos ideais. Se as gerações anteriores precisavam ralar para se
safarem dos valores preestabelecidos e cultuados pelos pais e sociedade,
rasgando os protocolos e rompendo com os constrangimentos sociais, a geração de
jovens hoje precisa encarar o fato de que o futuro está em aberto e tudo pode
ser possível. Paradoxalmente isso tem sido motivo de muito desamparo e aflição
(pânicos, depressões, drogas), já que para se tornar “gente” é preciso
construir um “eu” que dê conta do recado, ou melhor, dos inúmeros recados: seja
do mundo interno, sempre tumultuado com suas paixões, dores, medos e
desencantos, um mundo que jamais é silencioso ou isento e quando isso acontece
convém desconfiar ser uma tentativa (muitas vezes sintomática) de controlar e/ou
se proteger do tumulto ; seja do mundo sociocultural com suas inúmeras
demandas de competencia, que exige ainda um saber se colocar diante dos outros
e a construção de um lugar para si que possa ser reconhecido tanto no plano
profissional quanto no amoroso. Difícil encarar a vida sem se anestesiar ou
enlouquecer. Se admitirmos que a família já não tem o mesmo peso na definição
dos destinos (o plural é importante ) dos jovens, ao mesmo tempo em que isso
pode abrir portas inusitadas e importantes, também pode paralisar e engessar.
Muitos jovens se sentem insuficientemente preparados para um futuro que depende
tanto deles para ser construído. Se tal afirmação pode explicar em parte o
aumento desta “gestação” do jovem antes de se “jogar” no mundo em busca de um
futuro, é verdade que nós, pais, também vivemos nossas incertezas e ficamos muitas
vezes entre a constatação (e a frustração) de que nossos pimpolhos não estão preparados e
a agonia diante do que fazer para ajuda-los/incentiva-los a decolar. A boa
notícia é que a grande maioria dos jovens faz uso de uma nova prerrogativa ao
construir redes de amizades que podem funcionar como suplência interessante
para o debate de suas questões
As teclas pretas das teclas brancas
Em minha família,
pianos abertos, prontos para serem tocados por quem quisesse era (e ainda é)
uma cena comum. Tínhamos um em nossa casa, em cada uma das casas de nossos avós
e de muitas de nossas tias. Quando éramos pequenos, minha mãe, que havia se
formado no Conservatório Dramático e Musical de Araraquara, costumava tocar as
músicas de um maravilhoso álbum de Chopin lançado por ocasião do filme sobre
sua vida - À noite sonhamos (1945)- com a seleção da trilha sonora. Por conter
muitas fotos de cenas do filme, adorávamos folheá-lo, e embora tivéssemos
nossas preferencias – Noturno n 2, o Estudo Revolucionário ou o Estudo das
teclas pretas, por exemplo - era impossível decifrar aquelas bolinhas pretas,
cheias, vazias, com hastes, junto com muitas ou separadas que seguiam por
espaços de linhas pelo álbum todo. Não me lembro de quem me ensinou a tocar o
“bife”, uma espécie de introdução ao teclado de um piano, mas lembro-me bem de
meu orgulho quando me punha a toca-lo sempre que tivesse alguma plateia.
Sentia-me muito sabida por poder arrancar um som agradável e conhecido daquelas
teclas brancas, mas principalmente das pretas. Parecia natural, portanto que
aos cinco anos eu começasse a ter aulas de piano com Dona Eda, uma jovem mulher
muito alta, que morava com sua irmã e sua mãe bem enfrente ao comércio de meu
pai. Não conheci nenhuma professora tão doce e tão preparada para ensinar
crianças pequenas a ler aqueles hieróglifos musicais e sei hoje que devo à sua
imensa paciência o fato de eu ter me formado em piano. Como naquela época eram
necessários 9 anos de estudos para se obter o diploma, depois de alguns anos
tive que me despedir de minhas aulas particulares com Dona Eda para ingressar
no Conservatório Musical da cidade. Um marco que sublinhava minha passagem à
pré-adolescência com novos e mais difíceis destinos. Deixava para trás com
muita dor na alma, não apenas minha querida professora, mas alguém especial,
que sabia exercer com maestria a difícil tarefa/arte de ensinar, em uma
combinação de delicadeza, reconhecimento pontual de minhas aquisições e muito
jogo de cintura para com a pesada disciplina exigida para este aprendizado. Uma
de suas estratégias era colocar balas deliciosas encima das mãos enquanto eu
tocava e se eu conseguisse não derruba-las poderia levar para casa em dobro. Nem
tudo eram flores. Muitas vezes “emburrei” nos degraus da varanda exigindo que
ela, no devido tempo, fosse me convencer a voltar e tentar novamente. Assim
como a máxima que diz que governo bom é governo invisível,
que não nos impõe sua presença, Dona Eda trabalhava nos bastidores. Tudo o que
me lembro dela passa por este canal amoroso de sua aptidão para transmitir seu
conhecimento sem fazer alarde. Uma das questões que mais se debate nos dias de
hoje é como e quais valores deveriam ser transmitidos de geração a geração, que
possam servir de ferramentas para uma vida “bem vivida”, um convívio entre
pessoas minimamente respeitoso. É
natural que muitos se lembrem de como a educação tradicional privilegiava a
transmissão de comportamentos virtuosos geralmente baseados em alguns ideais já
estabelecidos e coletivamente cultuados. Mas as rupturas com estes ideais foram
de tal ordem que temos dificuldades para dimensionar a nova realidade que nos
circunda e entender seus múltiplos aspectos. Desconfiamos que ficou muito mais
complexa a tarefa da transmissão entre gerações e que não será o contato com os
objetos ou ferramentas que farão crianças melhores, mais inteligentes ou
felizes, mas como estes objetos/ferramentas serão mediados por adultos capazes de fornecer
significados e ajustes importantes ao que ainda não sabem. Em qualquer piano
aberto pode-se dedilhar o bife. Alguns sabem toca-lo, ou a temas musicais de
seu gosto. Muitos não se atrevem. Outros tantos sabem TUDO de música e podem
tocar não só piano como qualquer instrumento. No inicio do aprendizado utilizamos
muito mais as teclas brancas e à medida que a harmonia aumenta em complexidade
é que as pretas passam a ser utilizadas. As teclas pretas são os meios tons
entre uma tecla branca e outra, ou seja, podemos inclui-las para aumentar as
opções de modulações do som ou tocar apenas as notas básicas que todos
conhecem. Não sei se eu teria continuado a estudar piano se não tivesse tido
meu pré-primário com Dona Eda. Foi ela quem me “revelou” não a música, mas a
beleza da música e me transformou em alguém apaixonada por ritmos, sons
especiais, inaugurando um espaço novo e importante no meu conjunto. Talvez a
tarefa desafiadora de qualquer adulto contemporâneo seja a de se preparar para ser
este decifrador para os pequenos, mas sabendo que é preciso começar pelas
teclas brancas para quem sabe chegar às pretas.
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