quinta-feira, 25 de junho de 2009

Deleites musicais

Manhãs de domingos ensolarados em São Paulo são quase sinônimos de um passeio até o Parque Ibirapuera, que para quem não conhece, representa não só um pequeno-grande pulmão verde nesta mega-cidade, como cumpre um papel importante de cartão postal cultural. Isto porque além de abrigar alguns dos melhores museus como o MAM , o MAC e o Museu Afro-Brasil, o parque foi totalmente projetado pelo nosso grande e genial Niemeyer, cujas obras conseguem ser elas mesmas eternas e encantadas obras de arte. No último dia 17 além do sol e do céu azul sem nuvens, a OSESP ( Orquestra Sinfônica do Estado de São Paulo) oferecia um concerto gratuito para quem se dispusesse ir ao parque às dez da manhã, sentar-se na grama enfrente ao palco aberto do Auditório. E tal como o valor da cereja que tanto completa esteticamente, quanto desperta a gula, o programa era Carmina Burana do compositor alemão Carl Orff. Por ser uma obra cantada em coral e baseada em poemas profanos medievais que exaltam o amor, o jogo e o vinho, ouvi-la é sempre uma experiência marcante. Mas ouvi-la acomodada em um chão gramado, sob o sol de inverno e o céu silenciosamente azul, cercada por uma atmosfera de contágio absoluto é, sem dúvida, uma experiência rara de êxtase. Experimentar o máximo prazer possível, entretanto, nem sempre foi uma opção ao acesso dos indivíduos, mesmo que se dispusessem a manter o bom senso e o respeito aos códigos de convivência de sua cultura. Ainda hoje, é visto tanto como uma conquista como algo indevido. Na história da humanidade, o “excesso” de prazer, a entrega ao deleite e ao gozo, sempre esteve na mira e no controle das culturas, sob diferentes formas de restrições. O som de Carmina Burana acrescido de todas as circunstancias desta manhã especial, convidava ao exame destas restrições porque seus poemas e canções medievais e profanos, encontrados no início do século XIX em uma abadia na Bavária, tinham permanecido escondidos durante vários séculos. Foi graças a sua publicação em 1847, que Carl Orff , encantado com seu conteúdo original, decidiu compor esta obra impactante, uma das mais tocadas no século XX. Os pergaminhos, na verdade, foram escritos entre os séculos XII e XIII por cultos e eruditos goliardos, monges expulsos ou desertores da Igreja que faziam críticas mordazes às autoridades eclesiásticas, à hipocrisia e ao poder econômico da época. Ao se desligarem das normas restritivas e da dura vida monástica, eles se transformavam em livres peregrinos e por um bom copo de vinho, um colo ou uma cama, compunham versos e canções populares que falavam sobre a vida, a morte,a sorte, o azar, a fortuna, o amor ou as desventuras. Por sua alegria, irreverência e principalmente pelos conhecimentos sobre arte, música e literatura eram respeitados, mas por romperem com as regras rígidas dos conventos, dirigir-lhes zombarias ou revelar seus descompassos eram considerados anárquicos e revolucionários. A Igreja não só os perseguiu como fez desaparecer seus poemas, o que tornou a descoberta destes, uma maneira de revelar algo sobre os modos de existência da época. Sem referencias sobre “o prazer possível”, o comportamento ousado e criativo dos goliardos acabava por causar uma simpatia desconfortável ao povo que os recebia, apreciava e respeitava seus conhecimentos e sua arte. Fica fácil entender porque chamamos de “Luzes” os últimos séculos da Idade Média, ocasião em que se tornou um objetivo perseguido por grande parte da humanidade, a busca e a troca de conhecimentos que pudessem se contrapor à ignorância e ao obscurantismo, dois dos muitos fatores que podem promover o submetimento de um povo a qualquer espécie de poder que prometa ideologias prêt-à-porter. De quebra, ouçam Carmina Burana !

Coluna do dia 26 de agosto de 2008

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