quinta-feira, 25 de junho de 2009

Em terra de cego ter olhos dói

Dentre as inúmeras possibilidades oferecidas pela Internet está a que nos permite acessar todos os tipos de informações sobre o assunto que se quer pesquisar. Na última Marie-Claire, Alice Braga discorria sobre o tão esperado filme de Fernando Meirelles, que ousara recriar na tela, Ensaio sobre a Cegueira, livro do escritor português José Saramago. A leitura desta entrevista aguçou minha curiosidade sobre a história desta filmagem. Foi assim que cheguei ao blog criado pelo diretor especialmente para relatar esta aventura arriscada: filmar uma obra escrita de um renomado autor ainda vivo. Não qualquer autor, mas Saramago, considerado um intelectual dos nossos tempos, cuja obra é resultado de reflexões importantes sobre as questões humanas e a responsabilidade social de todos e cada um sobre o mundo em que se vive. Na cola de alguns intelectuais de áreas as mais diversas que criaram blogs e passaram a alimentá-los utilizando-se de uma linguagem coloquial (quase como se estivessem conversando em suas salas de visitas com amigos do peito), Meirelles seguiu a fórmula e acrescentou aos seus relatos, todos os tipos de emoções. No diário de bordo de sua aventura “saramaguiana”, ele nos convida a ser parceiros nos sobressaltos e alegrias de sua peregrinação e acompanhá-lo em suas inúmeras versões filmadas do livro, cada uma finalizada com a sensação agradável de ter atingido o resultado final, mas que acabava se revelando faltosa, excessiva, surda ou... cega. Ingenuidade ou arrogância como ele mesmo se indaga, são dois critérios orientadores e quase sempre imperfeitos que utilizamos quando empreendemos algum projeto. E só revelam suas falhas se pudermos compartilhar e confrontar os resultados ouvindo outras pessoas. Meirelles relata assim, as várias vezes em que imaginou ter conseguido chegar lá, e que graças as vozes dissonantes, surgiam detalhes, olhares, ressalvas e apreensões novas, que ele não havia pensado ou que para ele não eram relevantes. E brinca: é possível um diretor fazer um filme sobre a cegueira e não conseguir enxergar? Na verdade, é também desta espécie de cegueira que a história do livro trata!
Dizem as reportagens que Saramago teria recusado durante anos os pedidos de licença para filmar sua “cegueira”. Entre outras coisas, o autor dizia que esta obra em especial, tinha lhe exigido muito emocionalmente. Em seu blog, Meirelles apresenta um pequeno vídeo em que ele e Saramago acabam de assistir a versão final do filme. Em meio às palmas dos poucos espectadores presentes, a câmera se fixa na face tomada pela emoção de Saramago. Ao olhar ansioso do diretor, passam-se muitos minutos de silencio do autor. Quando finalmente Saramago fala, sua voz está embargada e, sem se voltar para o olhar de expectativa de seu interlocutor, apenas balbucia que assistir ao filme tinha lhe causado a mesma e boa emoção de quando havia terminado de escrever o livro. Mais alguns minutos de silencio se passam , com a câmera fixa em um Saramago sob o impacto de suas lembranças. Não por acaso. O filme, que concorreu no festival de Cannes e deve entrar em cartaz no Brasil nas próximas semanas, aborda de maneira dramática o quanto nós, humanos, insistimos em não reconhecer o quanto dependemos de outros humanos para viver, e somente nos damos conta disso, contrariados, quando o que nos resta é tentar sobreviver.

Coluna do dia 02 de setembro de 2008

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