quarta-feira, 24 de junho de 2009

O sotaque japonês do Brasil

A movimentação em torno dos cem anos da imigração japonesa para o Brasil fez surgir no cenário cultural uma infinidade de informações, análises de influências artísticas, políticas e sociológicas, entrevistas, testemunhos, etc. que abrem um debate interessante tanto sobre a história dos imigrantes e seus descendentes, quanto à polêmica identidade brasileira. Mas seja de um lado ou do outro, estas histórias nos revelam certas peculiaridades da cultura nipônica que ao longo deste século foram fazendo parte da nossa brasilidade. Nem sempre nos lembramos que o século XIX transportou milhares de imigrantes vindos do Oriente e da Europa em busca do sonho americano: um novo continente ainda imberbe, que acenava com um território imenso a ser explorado e uma cultura jovem, sedenta de incentivos da tradição milenar de certas civilizações. O Brasil, ainda que não tivesse o mesmo prestígio da outra América, colonizada desde o seu início por ingleses e irlandeses dispostos a torná-la sua morada definitiva, mantinha suas portas abertas aos imigrantes que aqui aportavam. Duas Américas e duas culturas substancialmente diferentes que viveram suas histórias atravessadas pela farta presença da diversidade de seus imigrantes, mas que escreveram histórias diferentes sobre esta experiência. Não foram poucos os pensadores que teceram teorias e hipóteses sobre nossa tão proclamada miscigenação, fosse exaltando nossa democracia racial ou abordando o lado sombrio do preconceito velado de uma elite branca. Sobra a figura ambivalente de uma “inclusão excludente” que de certa maneira não impediu a concretização do espírito moderno: poderia caber a qualquer um a tarefa de ascender na escala social. Teorias à parte, se há relatos tocantes nesta comemoração do centenário da imigração japonesa, são de “nossos” nisseis (filhos), que tal como sanduíches, receberam sua quota da tradição nipônica, mas souberam beber da cultura de seu novo país (do qual a grande maioria se orgulha) e, ainda que às custas da reticência familiar, ajudaram a engordar a estatística dos brasileiros “mestiços”. Histórias nem sempre felizes, em que o percurso até a aquisição de uma identidade, muitas vezes significava negar as raízes de uma tradição que exigia disciplina e respeito à hierarquia, na tentativa de se misturar entre os multi-étnicos brasileiros. O exílio é uma experiência impar, que só pode ser descrita por quem a viveu, uma fratura incurável entre alguém e seu lugar de origem. O que dizer quando este exílio é marcado pela necessidade de “ fazer misturar” línguas,costumes, crenças, religiões,tradições e valores culturais tão diferentes? Na Revista da Folha de 15 de junho último, há um texto singelo da sansei (netos) Célia Sakurai em que ela se recorda da ansiedade compartilhada com as irmãs e primas quando, ocasionalmente, a avó preparava o manju, um doce especial de feijão em que os melhores eram separados para serem oferecidos aos antepassados. Por mais explicações que ouvissem sobre a importância deste ritual, era-lhes inimaginável aceitar que a cota de doces para cada um ficasse menor diante da obrigação de dividi-los com o tal “santo”. Também lhe parecia exagero a insistência da avó em contar e recontar sobre seu país de origem, aquele paraíso perdido, exaltando os costumes e as tradições e apontando a superioridade de sua cultura. O estranhamento que a maneira diferente de ver e viver da avó lhe provocava pôde ir sendo redimensionado a medida que lhe foi possível entender e aceitar suas raízes, ainda que se sentisse parte integrante de seu país, o Brasil. Nestes cem anos em que as duas culturas, a brasileira e a japonesa se encontraram, se estranharam, se admiraram e trocaram experiências, nós ganhamos um sotaque japonês. Podemos percebê-lo na farta variedade de frutas, verduras e legumes, nos pratos à base de peixes crus e especiarias inéditas, nas artes plásticas e na arquitetura, e até em algumas palavras que já foram incorporadas à nossa cultura. De nossa parte, acostumamos a vê-los cada vez mais integrados aos nossos costumes. Pergunte a algum araraquarense sobre o mais saboroso sorvete da cidade. Dificilmente ele não se lembrará, lambendo os lábios, da sorveteria Kawakami.

coluna do dia 8 de julho de 2008

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