quarta-feira, 24 de junho de 2009

Uma boa morte

Minha avó estava a alguns passos de fazer 100 anos quando morreu. Lembro-me de tê-la visto pela última vez em um Natal, ocasião em que nós, seus netos e bisnetos espalhados pelo Brasil e o mundo afora, nos reuníamos e em alguma tarde combinávamos de visitá-la. Por algum motivo fiquei de fora do burburinho, assistindo sua alegria manifestada pelo bater de palmas e pelas canções de sua infância no Líbano. Passou-me que talvez eu estivesse me despedindo dela e embora este pensamento me causasse mal-estar, também me fez permanecer naquele lugar de observadora. Quando recebi a notícia de sua morte em janeiro, escrevi uma “crônica da boa morte anunciada” em que tentava reproduzir os sentimentos daquela véspera de Natal. Duas palavras guiavam minhas lembranças: a paixão pela vida. No caderno Mais! da Folha de São Paulo do dia 15 de junho último foi publicado um artigo intitulado “Última vida”, escrito pelo filho de Susan Sontag, escritora e intelectual americana que faleceu há 3 anos, vítima de câncer. O texto é um depoimento amoroso e saudoso, carregado de humanidade, em que ele, na condição de único filho, tenta avaliar sem sucesso, sua cumplicidade na decisão da mãe em se submeter a um transplante de medula, última tentativa de sobrevida, embora os fatos anunciassem um quase certo malogro. Sua dúvida, entretanto, não tem fim já que ora se inclina a acreditar que se tivesse se posicionado contra poderia ter evitado o sofrimento e as dores físicas provocadas por esta intervenção que no final se mostrou inútil, ora se orgulha de ter escolhido compactuar com a crença materna de que sempre haveria um jeito de driblar a doença e aumentar o tempo de viver. Afinal, na década de 70, com outro câncer, ela havia apostado e ganhado. Mas a beleza do texto certamente está na tentativa de compartilhar com os leitores seus sentimentos ambivalentes em relação à radicalidade da negação da morte que percebia na mãe, o que, na sua visão, teria impedido-o de falar, discutir e dimensionar a situação e até de se “despedir” dela. Sua recusa em aceitar a morte fazia com que ela solicitasse de todos e em particular dele, uma torcida incondicional e a qualquer custo, a favor da vida. De forma muito honesta e humilde, confessa que embora preferisse que ela aceitasse o inevitável de sua morte eminente eliminando aquele plus de sofrimento, sabia que cada um tem direito à sua própria morte. Quem seria ele para definir uma “boa” morte? Existe? A evocação da figura de minha avó na leitura deste texto não foi por acaso. Cresci assistindo-a a restringir sua alimentação, a fazer religiosamente exercícios de pernas e braços, a cumprir metodicamente sua rotina, ao mesmo tempo em que transpirava por seus poros a vontade de viver. Era como se ela se dispusesse a controlar de qualquer maneira este tempo implacável que denuncia aos poucos a transitoriedade de nossas vidas, espremidas entre nosso nascer e nosso morrer. Embora o filho de Susan Sontag atribua o comportamento de sua mãe a um medo indescritível da morte, não há quem não a tema. O que nos faz singulares não é o medo da morte, mas como cada um de nós inventa formas para driblar tanto a morte quanto o medo dela. Afinal, quem não quer se agarrar a qualquer custo à possibilidade de ser uma exceção?




coluna do dia 23 de junho de 2008

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