terça-feira, 23 de junho de 2009

A voz do povo é a voz de Deus ?

Quem nunca fez uso ou mesmo ouviu algum ditado popular? Os ditos populares são conhecidos e transmitidos de geração em geração por encerrar um tipo de sabedoria do povo, certas verdades e crenças que habitam o imaginário cultural . Utilizados como veículos de conhecimento moral e prático revelam os valores do senso comum e são lembrados em várias situações da vida cotidiana para ajudar na representação da realidade. O futuro a Deus pertence, A verdade gera o ódio, As aparências enganam , Cada cabeça uma sentença, O tempo é o senhor da razão, Em briga de marido e mulher, ninguém mete a colher. Existe um número sem fim de exemplos destas frases utilizadas para dar significado, exprimir emoções, nomear ações ou encerrar verdades morais. Desconhecendo fronteiras étnicas ou sociais, são reconhecidos e compartilhados por grande parte da comunidade, que nunca os questiona. Pode-se dizer que certas reações de comoção geral da população, sejam de repúdio ou solidariedade à determinados fatos, cumprem um ritual semelhante. A morte da menina Isabela provocou este tipo de reação coletiva e mobilizou um contingente sem fim de pessoas que se postou enfrente ao local, carregando cartazes e entoando frases que fossem capaz de transmitir os sentimentos de inconformidade diante da hipótese de seu assassinato. Todos a postos para lembrar que há uma interdição social compartilhada quanto a possibilidade de pais biológicos ou adotivos provocarem a morte de seus filhos, ato que transgride normas, valores e regras da sociedade. Exaustivamente noticiado pela mídia, não seria difícil para quem assistisse, entender as razões de tais manifestações que pareciam buscar um sentido para esta tragédia. Perplexos, a maioria ainda torcia para que a morte da menina de 5 anos pudesse ser atribuída a um acidente, um assalto, uma fatalidade qualquer, o que propiciaria a volta de todos às suas vidas e rotinas. Senão, como aceitar ou explicar o ocorrido? Afinal se existe ainda um lugar sagrado em que se espera que crianças possam ser amadas e protegidas é a família. É no seio da família que cada rebento deverá se tornar “ gente grande”,construir um futuro e um lugar no mundo para que possa ser reconhecido por seus pares e também, se for o caso, construir uma nova família ao lado de um parceiro escolhido por “amor” e de filhos que serão frutos deste mesmo afeto. Visão idealizada, sem dúvida, mas necessária para que se possa imaginar um mundo futuro em que os humanos continuarão a ter um espaço de construção de si e em que serão transmitidos os valores geracionais e culturais. É difícil para todos admitir que no seio das famílias não habitem apenas sentimentos de amor e harmonia. A dinâmica entre os membros familiares é complexa, cheia de ambivalência e se o que define atualmente uma família é muito mais os seus laços afetivos, também é verdade que estes afetos são tanto de amor quanto de ódio, rivalidade, ciúmes, ressentimentos, etc. Se hoje as famílias são recompostas e convivem com filho(a)s de outros relacionamentos ou pais e mães adotivos, embora isto não comprometa a função da família, exige acertos, pactos e alianças que legitimem as parentalidades e as filiações. Mas não é fácil para homens e mulheres, pais ou mães, biológicos ou adotivos responsabilizarem-se por este lugar de acolher, criar e educar as crianças que lhe cabem. E se o clamor da voz do povo neste episódio cumpriu o papel de confirmar suas crenças, esta também é uma maneira (ainda que oculta) de exorcizar e lavar as mãos para que não seja preciso passar pela cabeça de ninguém, o fato de que qualquer um de nós pode chegar a matar. Tornar-se adulto não elimina os ajustes eternos entre o que a realidade impõe e o que nossas poderosas exigências infantis pedem.

coluna do dia 29 de abril de 2008

Nenhum comentário:

Postar um comentário